Estupro

A dor de uma menina é a de muitas: as barreiras do aborto legal no Brasil

Longe da excepcionalidade, apesar da legítima comoção que provocou, a via-crúcis vivida pela criança de 10 anos, estuprada pelo tio, expôs o quanto o debate sobre o aborto no Brasil ainda é negligenciado

Ciara Carvalho
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Ciara Carvalho
Publicado em 23/08/2020 às 7:31 | Atualizado em 23/08/2020 às 8:18
Felipe Ribeiro
ABORTO - FOTO: Felipe Ribeiro

Tudo deveria ter ocorrido em sigilo, desde cedo sob a proteção da lei. Mas o vazamento dos dados da menina negra de 10 anos, estuprada e grávida do tio adulto, três vezes mais velho do que ela, transformou as consequências da tragédia do abuso sexual em uma exposição cruel e criminosa. A recusa da rede de saúde pública do Espírito Santo em atender um direito constitucional prolongou o sofrimento. Coube ao Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), referência em Pernambuco para aborto legal, estancar a sequência de ausências. Ao cumprir a lei, a equipe médica da unidade ajudou a menina a voltar a sorrir. Longe da excepcionalidade, apesar da legítima comoção que provocou, a via-crúcis vivida pela criança expôs o quanto o debate sobre o aborto no Brasil ainda é negligenciado. Escancarou uma série de violações cotidianas. A história da menina do município de São Mateus é a de muitas. Vítimas da mesma violência. Nem todas com o mesmo desfecho.

A gravidez até os 14 anos, embora apontada pela legislação como estupro, é uma realidade. Só em 2018, dados do DataSUS revelam que 21 mil meninas entre 10 e 14 anos engravidaram e pariram no Brasil. O constrangimento e o assédio violento sofridos pela criança e a sua família, tanto no Espírito Santo quanto em Pernambuco, ajudam a explicar um número tão assustador. O alto índice de meninas-mães no País é resultado direto de uma combinação perversa de fatores. Previsto em lei há 80 anos, o direito ao aborto legal enfrenta obstáculos concretos. Dentro e fora do sistema de saúde pública.

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"Esse caso é emblemático. Ele reúne todos os elementos que comprovam o quanto a criminalização do aborto, e sua condenação moral, termina prejudicando as mulheres. Até as que sofrem aborto espontâneo são julgadas. O que explica o sofrimento imposto a essa criança, se não a negação sistemática da lei?", provoca a professora da Universidade Federal da Bahia, Greice Menezes, pesquisadora do Programa Integrado em Gênero e Saúde, ligado ao Instituto de Saúde Pública da UFBA. Ela afirma que um dos maiores entraves para a efetiva aplicação da legislação se encontra no próprio serviço de saúde, diante da resistência de parte do corpo médico de oferecer à mulher a opção do aborto legal quando ela acessa a rede de assistência.

"É uma questão fundamental a ser enfrentada. Precisamos regulamentar a 'objeção de consciência', que é quando o médico alega um desconforto em realizar o procedimento em função de crenças pessoais e religiosas. Essa recusa, apesar de ser legítima, não pode implicar na negação do direito da mulher à interrupção da gravidez. O atendimento precisa ser garantido por outro profissional", explica a pesquisadora. No caso da menina do Espírito Santo, a alegação do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), que se negou a fazer o aborto, foi a de que não havia competência técnica para realizar o procedimento. "É difícil acreditar nessa explicação, porque se essa mesma menina, com o mesmo tempo de gestação, chegasse com um quadro de infecção urinária grave, certamente a cirurgia seria feita", compara.

Felipe Ribeiro
ABORTO - Felipe Ribeiro

A limitada rede de serviço de saúde capacitada para realizar o abortamento legal é outro forte entrave, sobretudo para o acesso de mulheres que moram em pequenos municípios do interior do País. Para se ter uma ideia, o primeiro serviço de referência em aborto legal do Brasil surgiu em 1989, na cidade de Jabaquara, em São Paulo. Passados mais de 30 anos, apenas 39 maternidades e hospitais do País fazem parte da rede especializada em atender as mulheres nos casos de aborto previsto em lei. E a maioria está nas capitais e grandes centros. "A expansão desses serviços democratiza o acesso. Sem isso, não há como garantir o efetivo cumprimento do direito das mulheres", defende a pesquisadora da UFBA.

Com a experiência de 24 anos no Programa Pró-Marias, serviço que atende vítimas de violência sexual dentro do Cisam, a assistente social Valquíria Ferreira vê diariamente meninas menores de 14 anos procurarem a maternidade já perto de parir. "Em muitos casos, elas nem se dão conta do estupro que sofreram. A falta de informação é total. Em sua maioria, essas meninas são muito pobres, com baixa escolaridade e convivem com uma violência estrutural, que termina naturalizando a prática do estupro. Elas não percebem a gravidade da situação", constata.

VIOLÊNCIA SEXUAL

O resultado dessa desinformação é que os índices de abortos legais em crianças e adolescentes nem de longe acompanham as estatísticas de violência sexual. No Brasil, a cada uma hora quatro meninas de até 13 anos são estupradas, segundo o Anuário de Segurança Pública do ano passado. Em 2018, das 66.041 pessoas que sofreram estupro do Brasil, 53,8% tinham menos de 13 anos. Já o número de procedimentos legais em meninas de até 14 anos, embora alto, não traduzem a violência sofrida por esse público. Dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde mostram que o Brasil registra uma média de seis abortos por dia em meninas com idades entre 10 e 14 anos. "As estatísticas da polícia não batem com as da saúde", confirma Valquíria Ferreira, coordenadora do Pró-Marias.

Por falta de orientação ou de acesso ao atendimento, muitas recorrem ao aborto clandestino e terminam morrendo. Em fevereiro deste ano, a pesquisa "Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?" jogou luzes sobre um dos aspectos mais dramáticos desse problema. Por meio da coleta e análise de registros públicos do Sistema Único de Saúde, o estudo traçou o perfil das brasileiras que mais morrem em decorrência do aborto inseguro.

Ao se debruçarem sobre um intervalo de dez anos (2006 a 2015), os pesquisadores chegaram ao número de 770 óbitos maternos que foram contabilizados como tendo o aborto como causa oficial. Quando as estatísticas incluíam as fichas médicas que mencionavam o aborto, mas apresentavam outras razões de morte, o número de casos aumentava em 29%. Isso sem considerar o alto grau de subnotificações, já que nem todas as mulheres que abortam conseguem acessar o sistema de saúde.

No Brasil, as maiores vítimas de complicações resultantes de uma interrupção insegura da gravidez são mulheres negras, menores de 14 anos e moradoras da periferia. Elas têm cor, idade e endereço. Mas seguem invisíveis. Assim como a menina de 10 anos do Espírito Santo, que, durante quatro anos, foi estuprada, em silêncio. Uma história só revelada porque a violência, a que a criança foi submetida, não parou no estupro.

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APOIO Cisam ganhou cartazes durante internação da criança de 10 anos - YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM

Felipe Ribeiro
Inicialmente, criança de 11 anos teve o direito ao aborto negado na Justiça - FOTO:Felipe Ribeiro
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APOIO Cisam ganhou cartazes durante internação da criança de 10 anos - FOTO:YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM

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