Saúde

Médicos acessaram quarto de menina vítima de estupro para questionar decisão sobre aborto

Os dois profissionais não estavam de plantão. Eles teriam sido acionados por grupos religiosos para tentar interferir no processo

Ciara Carvalho
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Ciara Carvalho
Publicado em 19/08/2020 às 15:29 | Atualizado em 21/08/2020 às 9:03
YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM
Em nota, o Cisam/UPE informou que, por questões jurídicas e de sigilo médico, não iria comentar sobre o caso - FOTO: YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM

Atualizada às 18h20

Um obstetra e uma pediatra estão sendo acusados de terem usado a posição de médicos para acessar o quarto em que a menina de 10 anos estava, no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), na noite do último domingo (16). Ela havia dado entrada no hospital havia poucas horas. Na abordagem, os profissionais questionaram a decisão da criança e da avó de interromper a gravidez.

Os dois profissionais não estavam de plantão nem há informações de que eles façam parte da equipe médica do Cisam. Eles teriam sido acionados por grupos religiosos para tentar interferir no processo.

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A ação dos médicos foi relatada pela assistente social capixaba que veio do Espírito Santo, acompanhando a avó e a menina. Ela estava no quarto no momento da abordagem.

"Eles entraram usando as credenciais de médicos e começaram a conversar com a criança, fazendo uma pressão psicológica em cima da menina, perguntando sobre a situação do estupro. Quando a assistente social percebeu a condução da conversa e o constrangimento que e a criança estava passando, tentou amenizar, cortar o assunto, fazendo o possível para que aquela situação não se prolongasse", contou a enfermeira Paula Viana, do Grupo Curumim, que acompanhou a menina desde a chegada do aeroporto até o hospital.

DENÚNCIA

Paula não estava presente na sala, mas ficou revoltada com o relato. "Isso é um absurdo, porque eles não eram os médicos que estavam acompanhando o caso, não estavam de plantão, não tinham qualquer relação com o atendimento que estava sendo prestado", afirmou.

O médico Olímpio Moraes, diretor do Cisam, disse que teve conhecimento da situação e orientou a assistente social do Cisam para prestar uma queixa na Ouvidoria da unidade de saúde. "Se for constatado que a informação é procedente, vamos levar o caso ao Comitê de Ética Médica do Cisam. Com certeza, isso precisa ser apurado. E, se for confirmado, tem que ser punido", afirmou. Ele não soube informar se os profissionais envolvidos eram médicos da própria unidade. Mas destacou que a sociedade precisa acompanhar e cobrar as providências, caso a denúncia se confirme. 

A ação dos médicos teria sido denunciada à Promotoria de Infância e Juventude da Capital. O JC procurou o Ministério Público Estadual para saber se a denúncia, de fato, já foi feita, mas ainda não obteve resposta. A reportagem também acionou o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) para ter informações se o órgão já foi notificado sobre a abordagem feita pelos dois médicos.

ONU


Em nota, a Organização das Nações Unidas (ONU) prestou solidariedade à menina de 10 anos e afirmou que apoia as iniciativas das autoridades brasileiras para apurar e processar, de acordo com o devido processo legal, o crime de estupro. "A violência sexual, em muitos casos silenciada, devasta infâncias, atentando ao direito de cada menina e menino a viver uma vida livre de violências e outras violações de direitos humanos", diz o comunicado.

ENTENDA O CASO

A autorização para o aborto legal da garota de dez anos foi dada pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude da cidade de São Mateus, Antonio Moreira Fernandes. No despacho, o magistrado determina que a criança seja submetida ao procedimento de melhor viabilidade e o mais rápido possível para preservar a vida dela. É usada a expressão "imediata".

O caso foi descoberto quando a menina deu entrada no dia 8 de agosto no Hospital Estadual Roberto Silvares, em São Mateus, com sinais de gravidez. A garota estava se sentindo mal e a equipe médica desconfiou da barriga "crescida" da menina. Ao realizar exames, os enfermeiros descobriram que ela estava grávida de três meses.

Em conversa com médicos e com a tia, a criança confidenciou que o tio a estuprava desde os seis anos e que nunca contou aos familiares porque era ameaçada. O homem fugiu depois que a gravidez foi descoberta, e foi preso nesta terça-feira (18) na região Metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais. A informação foi confirmada pelo governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB) e também pela Polícia Civil do Estado.

Embora a menina seja capixaba e todo o caso tenha acontecido no Espírito Santo, o hospital determinado para realizar o procedimento no Estado se negou a fazê-lo e, por isso, a criança foi transferida para o Recife. Antes que ela chegasse ao Cisam-UFPE, as informações pessoais e sigilosas como o seu nome e o local onde seria feito o procedimento foram vazados na internet - uma das pessoas que divulgou as informações foi a extremista Sara Giromini, que se autodenomina Sara Winter.

Com as informações, grupos religiosos fundamentalistas, endossados por políticos da bancada evangélica, se aglomeraram e tumultuaram a entrada do Cisam-UFPE na tentativa de impedir a realização do procedimento. Os deputados estaduais Joel da Harpa (PP) e Clarissa Tércio (PSC) e os vereadores Michele Collins (PP) e Renato Antunes (PSC) encabeçavam esses grupos.

Na última terça-feira (18), as codeputadas Juntas (PSOL) protocolaram um pedido de procedimento administrativo contra Joel da Harpa e contra Clarissa Tércio (PSC) por causa do envolvimento nos tumultos. O conselho tutelar do Recife, por sua vez, pediu oficialmente à Câmara Municipal do Recife para que abra processo disciplinar contra os vereadores Michele Collins e Renato Antunes pela participação deles nos protestos promovidos pelos grupos políticos conservadores e movimentos antiaborto. A representação sustenta que os vereadores feriram o decoro parlamentar, ao se insurgirem contra uma ordem judicial.

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