O relógio marca 7h50, mas para Taciane o dia começou cedo. Com a filha Luna, de um ano, no colo, ela termina de fazer faxina na casa. Da janela improvisada é possível ver um fogão. Sem energia elétrica, o eletrodoméstico acaba virando apenas uma superfície de apoio para outros utensílios. Ao lado dele, uma mesa enferrujada exibe cremes, pentes e itens de higiene. As camas estão dispostas no chão, no espaço que é possível utilizar. O pouco que Taciane, o marido e a filha têm fica guardado entre pedaços de madeira e uma lona, que formam a estrutura do barraco onde ela passou a viver com a família durante a pandemia. Mas Taciane não é a única. Na Rua do Imperador, Centro do Recife, pelo menos 15 outras moradias semelhantes foram construídas nos últimos meses. Quem vive nas ruas e quem presta assistência à população em situação de vulnerabilidade confirma: a chegada da pandemia agravou o problema da falta de moradia. O resultado é um número cada vez maior de pessoas sem-teto e sem alento.
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Taciane da Silva, 18, vive há 3 anos nas ruas do bairro de Santo Antônio. Já ouviu todo tipo de promessa do poder público, mas nada nunca se concretizou. Construir o barraco foi a forma de poder dar um teto à família durante a pandemia. "Ninguém nunca faz nada. A prefeitura às vezes aparece e cadastra a gente, mas auxílio para sair das ruas a gente nunca recebeu. O que a gente come e tem é tudo doação de quem vem aqui ajudar", conta. As barracas vizinhas às de Taciane têm a mesma estrutura. Pedaços de madeira e papelão são cobertos por lonas pretas, apoiadas sobre estacas. Algumas barracas de acampamento também são vistas no local. A higiene é feita em um banheiro improvisado e a água utilizada para beber, cozinhar e tomar banho vem de um cano quebrado. A pequena comunidade fica em frente à Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, quase em frente à sede da Secretaria da Fazenda do Estado.
"Só queria uma casa, onde meu filho pudesse acordar, tomar um café da manhã e brincar em segurança." O semblante observador de Givanilson Pereira, 24 anos, se transforma em uma expressão de angústia enquanto olha o filho Luhan, de três anos, brincar com um fone de ouvido quebrado. "Queria poder ficar tranquilo, sabendo que ele não está na calçada, correndo risco de ser atropelado por algum carro", lamenta. Além de Luhan, Givanilson divide um barraco com a companheira Larissa Vieira, 24, que está grávida de cinco meses e uma filha de sete anos. "Não consegui auxílio (emergencial). Tudo o que consegui foi dar entrada no Bolsa Família para 2022, mas a gente não pode esperar esse tempo todo para receber só R$ 90."
Sem a presença do poder público, resta a solidariedade. "Todos os dias tem gente que traz comida à noite. Ainda assim, a gente passa fome. Os piores dias são segunda e terça-feira, que ninguém traz almoço. Ficamos de barriga seca até às 20h. Eu boto meu filho na cacunda e vou pedir comida por aí, pra não deixar ele com fome", conta Givanilson.
O cenário de abandono não se restringe à Rua do Imperador. Perto dali, no Cais de Santa Rita, famílias se espremem em barracos montados às margens da via. Outras pessoas dormem ao completo relento em colchões no chão, próximo ao terminal de ônibus. Nos sinais, como na Rua da Aurora, Santo Amaro, mais marcas deixadas pela pandemia: pedintes com placas de papelão pedem alimentos, dinheiro e emprego para superarem a falta de recursos e a fome.
O Centro do Recife é um dos principais pontos de atuação de ONGs e entidades da sociedade civil no Recife. Para Madgala Pereira, coordenadora do coletivo Unificados Pela População em Situação de Rua, o número de pessoas nas ruas nessa área da cidade aumentou muito durante a quarentena. Nas imediações da Rua do Imperador ela afirma que a população é cerca de três vezes maior hoje. "A população aumentou e isso é nítido até aos olhos de quem não está vivenciando de perto a situação. O que a gente observa é que alguns vão em busca de alimento, porque é um ponto grande de distribuição de refeições, e outros começaram mesmo a morar na rua devido à falta de subsídios e de dinheiro de programas do governo", pontua.
O coletivo, que reúne 42 entidades, não focou apenas em alimentação durante a pandemia. "Nosso objetivo inicial era amenizar a fome, o principal entrave naquela época do início da pandemia, em março. Até agosto, essa foi nossa prioridade. Distribuímos 300 mil marmitas pela cidade. Neste segundo momento, começamos a nos preocupar com a volta à rotina e ao mercado de trabalho. Passamos a oferecer capacitações, cursos, orientações profissionais", explica a coordenadora. O coletivo ainda oferece um ponto de apoio para higiene pessoal, localizado no antigo Liceu Nóbrega, na Boa Vista. "Sempre ouvimos deles que se não fosse o nosso trabalho eles não teriam nada. Sentimos muita verdade nisso. Eles se sentem abandonados porque ninguém nunca olhou para eles."
Em nota, a Secretaria de Desenvolvimento Social, Juventude, Política sobre Drogas e Direitos Humanos do Recife informou que em 2019 existiam 1,6 mil pessoas em situação de rua na capital. O levantamento não foi realizado em 2020. A gestão informou que o acompanhamento é "contínuo e realizado por equipes do Serviços Especializado em Abordagem Social (SEAS) em conjunto os profissionais do Consultório na Rua da Secretaria de Saúde do Recife" e que "a prestação de serviço consiste em conversa ativa, sensibilização e orientação e, sempre que há aceitação, no encaminhamento para a rede de acolhimento ou outros benefícios eventuais, como o aluguel social". A pata ressaltou que nenhuma equipe realiza retirada compulsória dessa população.
A Secretaria de Direitos Humanos afirmou que tem entregado insumos, como marmitas e itens de higiene, além de encaminhar para a rede de saúde, empregabilidade e retirada de documentos. O comunicado diz ainda que o Restaurante Popular Josué de Castro passou a entregar 325 mil refeições todos dias, na porta do restaurante e de forma itinerante. "A PCR também disponibilizou 120 vagas no Abrigo Emergencial para usuários que foram encaminhados pelo serviço de saúde com suspeita de covid-19 para que fosse feita a quarentena em um espaço digno. Além disso, o Abrigo Noturno Irmã Dulce permaneceu ofertando 100 vagas diariamente para acolher usuários. A PCR inaugurou ainda o Abrigo Edusa Pereira com a intenção de ofertar 40 vagas para pessoas idosas, grupo de risco da covid-19", diz a nota.
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