Não ter o que comer virou rotina: famílias precisam escolher qual refeição fazer no dia
"Vou dormir pensando: meu Deus, esses meninos vão comer o que amanhã?". Cláudia Matias, 35 anos
No segundo dia da série Fome, publicada em todas as plataformas do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, especialistas explicam porque o Brasil retornou ao Mapa da Fome e quais as alternativas para sair deste cenário negativo. A reportagem traz, ainda, histórias de pessoas que vivem a desumana experiência de não ter o que comer. Nesta terça-feira (21), o tema da série será insegurança alimentar, mostrando que, mesmo quem não está passando fome, enfrenta algum tipo de privação.
A pequena Sofia, 5 anos, acorda e fica pelos cantos da casa, em estado apático. Não tem café da manhã para tomar. Ela precisa esperar até a hora do almoço para fazer sua primeira refeição do dia. Desde que o pai ficou desempregado, há sete meses, pular o café virou rotina na família do casal Cláudia Matias (35 anos) e Marconi Silva (33), moradores das palafitas da comunidade do Bode, no bairro do Pina, no Recife. Sabendo da situação, às vezes os vizinhos trazem pão ou um pouco de bolacha para ela. Naquela manhã, uma segunda-feira de dezembro, também não tinha leite nem 'massa' para fazer o mingau de Marcos, 1 ano e 10 meses. A mãe despistou a fome da criança com uma banana.
Entre 2018 e 2021, o número de pessoas com fome no País passou de 10,3 milhões para 19,1 milhões. São quase 9 milhões de brasileiros a mais sem ter o que comer. Cláudia e Marconi saltam desta estatística para materializar, em história real, o retrocesso do Brasil no combate à pobreza. Após ter saído do Mapa da Fome, elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2014, o País já está de volta 7 anos depois.
Com o marido desempregado e ela cuidando dos filhos pequenos, a família vive de R$ 253 do Bolsa Família, de R$ 30 do cartão alimentação da escola da filha, de doações e dos bicos que o marido faz. Com o aumento da inflação, a situação se agravou e o dinheiro escasso rende cada vez menos.
Mãe de nove filhos - oito vivendo com ela -, Cláudia revela que, muitas vezes, entra em desespero quando se depara com os armários vazios. Amamentando os gêmeos Moisés e Josué, 4 meses, ela mesma já não sabe o que é fazer uma refeição matinal. Conta com a solidariedade das vizinhas que sempre aparecem com uma garrafa térmica no barraco para lhe oferecer um gole de café.
"Às vezes estou aqui sorrindo, mas ninguém sabe como está meu psicológico. Vou dormir pensando no armário: meu Deus, esses meninos vão comer o que amanhã? Uma mãe não quer que seus filhos passem fome. Isso me dói muito e fico chorando, pensando sempre no amanhã. É de doer o coração um filho pedir alguma coisa e a gente não ter como dar", lamenta.
O aumento nos preços dos alimentos obrigou a família a economizar o pouco que tem. Cláudia conta que antes colocava um pacote inteiro de arroz, feijão e macarrão no fogo. Agora coloca apenas a metade para dividir com o mesmo número de pessoas. "Quando divido as porções eles dizem: 'poxa, só isso mainha?'. Aí eu digo para inteirar com farinha e percebo que vão dormir com a barriga pra dentro, mesmo depois de ter comido. É uma tristeza", diz. Carne a família só come se doarem. Das vezes que Cláudia conseguiu comprar foi só carcaça de galinha: pé e pescoço.
Pandemia agravou cenário
No Centro do Recife, quem passa pelo Cais de Santa Rita ou pela Rua do Imperador se depara com uma legião de moradores em situação de rua. É verdade que, nesta época do ano, o número costuma aumentar por conta de um movimento sazonal: as pessoas ficam mais solidárias no Natal e fazem mais doações. Mas este não é o único motivo. Considerada a capital mais desigual do País, segundo o IBGE, Recife voltou ao Mapa da Fome, junto com o Brasil. Há quem tente atribuir à pandemia da covid-19 o retorno do País ao flagelo da fome, mas especialistas explicam que o fenômeno já vinha acontecendo e apenas se agravou com o novo coronavírus.
A fome é um problema histórico no Brasil e que se perpetua desde a época da escravização. Os governos e a sociedade civil nunca foram capazes de acabar com a fome, mas houve momentos em que o combate foi mais assertivo. Entre 2004 e 2013, o programa Fome Zero e outras políticas de combate à pobreza e à miséria produziram efeito positivo.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2004, 2009 e 2013, apontou uma redução da fome em todo o País. Em 2013, a parcela da população em situação de fome havia caído para 4,2% - o nível mais baixo até então. Isso fez com que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura excluísse o Brasil do Mapa da Fome, que divulgava periodicamente. Mas essa situação de garantia do direito humano à alimentação adequada foi perdida rapidamente. Os números atuais mostram que o número de pessoas com fome é mais do que o dobro do observado em 2009. O retrocesso mais acentuado aconteceu nos últimos dois anos.
Entre 2013 e 2018, segundo dados da PNAD e da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), a fome teve um crescimento de 8% ao ano. A partir daí, a aceleração foi ainda mais intensa: de 2018 a 2020, como mostra a pesquisa VigiSAN, o aumento da fome foi de 27,6%. Na prática, rapidamente em apenas dois anos, o número de pessoas sem ter o que comer passou de 10,3 milhões para 19,1 milhões. Nesse período, quase 9 milhões de brasileiros e brasileiras passaram a ter a experiência da fome em seu dia a dia. Esses dados estão no Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), como parte do Projeto VigSAN. Uma conjunção de fatores contribuíram para empurrar quase 9 milhões de brasileiros para a fome nos últimos anos.
Na avaliação do sociólogo e membro da coordenação executiva da Rede Penssan, Renato Carvalheira, uma delas foi o desmonte das políticas públicas de combate à pobreza e à miséria. "As políticas de segurança alimentar, que são distribuídas em vários ministérios, faziam políticas públicas e foram desmontadas nos governos que assumiram após Lula e Dilma. Tanto Temer quanto Bolsonaro não tinham a fome no seu radar, na sua prioridade. E, com isso, as políticas sofreram bastante. Quando o Estado fecha os olhos para a questão dos famintos boa coisa não sai", alerta.
Além do desmonte dos programas específicos de combate à fome, também ocorreram problemas com as iniciativas de transferência de renda, que são muito importantes no combate à fome. "A gente sabe que a partir de um salário e meio as famílias já não tem o problema de ficar sem comer. O avanço do salário mínimo acima da inflação era outra política importante. A substituição do Programa de Aquisição de Alimentos pelo Alimenta Brasil é outra questão. Reconhecido internacionalmente, o programa foi deixado de lado e o novo ainda não tem orçamento", destaca Carvalheira, lembrando a importância da agricultura familiar para equilibrar os preços dos alimentos. Claramente esses programas não são a prioridade do governo. Este ano eles melhoraram um pouco o discurso, mas no ano passado eles falaram que não existia fome. O ministro da Agricultura chegou a dizer que no Brasil não tem fome porque existe muita manga por aí", indigna-se Carvalheira.
O Brasil nunca deixou de ter fome. De acordo com a FAO, para ser considerada uma nação sem fome é preciso que um percentual inferior a 5% da população não tenha o que comer. Foi isso o que aconteceu com o Brasil em 2013, quando essa fatia ficou em 4,2% e o País saiu do Mapa. Anos depois, a fome tornou a avançar. Em 2004; 9,4% da população passava fome; em 2009 esse número caiu para 6,6%; em 2013 baixou para 4,2%; em 2018 deu um salto para 5,2% e em 2020 alcançou 9%. Com esse cenário, retrocedemos ao que acontecia no Brasil em 2004.
Estratégias
Maior pesquisador da fome no Brasil e reconhecido internacionalmente, Josué de Castro conta que sua descoberta da fome aconteceu nos mangues do Recife. No romance autobiográfico Homens e Caranguejos, as pessoas têm no mangue uma estratégia de sobrevivência. Hoje as estratégias são variadas. O mangue é uma delas, mas até ele perdeu sua força graças aos constantes ataques ao meio ambiente. Com fome as pessoas buscam o lixo.
É o caso de Jane, que preferiu manter sua identidade preservada. A mulher migrou de São Caetano (Agreste) para viver nas ruas do Recife sob uma lona. "Aqui fico contando com a bondade das pessoas, que me dão uma coisa ou outra e também vou buscar comida no lixo da churrascaria aqui perto. À tarde, depois do horário do almoço, sempre vou lá e encontro bastante coisa. Não é carne ruim, com tapuru, é coisa que dá pra comer", garante.
Vivendo na rua com os três filhos e o marido carroceiro, Maria do Carmo, 30 anos, depende de doações e do que o companheiro consegue coletar durante o dia. "Nós passamos fome, ficamos aguardando as doações e esperando que as pessoas ajudem. Quando aparece a gente come, quando não aparece ficamos com fome. Não sabemos nem o dia nem a hora que vamos comer e muitas vezes dormimos de barriga vazia", lamenta a moradora da Rua do Imperador, onde muitas outras famílias compartilham da mesma situação.
Outras estratégias de sobrevivência que chamaram atenção e são um termômetro do aumento da fome é a presença de pais e mães de família com placas nos cruzamentos da cidade. Os cartazes dizem: estamos com fome ou preciso de alimentos para meus filhos. Uma abordagem ainda mais direta é a presença de pessoas dentro de supermercados, farmácias e outros estabelecimentos comerciais, pedindo que lhes comprem algum alimento ou produto de higiene pessoal.
Fome tem cor, gênero e baixa escolaridade
Será que a fome é um fenômeno homogêneo ou atinge as pessoas com intensidades diferentes, de acordo com as características da população? A fome tem rosto, gênero, cor, grau de escolaridade? Pesquisa da VigiSAN aponta que sim, mostrando que a desigualdade no Brasil também reflete sobre as características da miséria. Se a fome tivesse uma expressão humana ela seria uma mulher negra e de baixa escolaridade. Nos dados de 2020, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres os habitantes estavam passando fome, contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem. Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome esteve em 10,7%. Entre pessoas de cor branca, esse percentual foi de 7,5%.
A fome se fez presente em 14,7% dos lares em que a pessoa de referência não tinha escolaridade ou possuía Ensino Fundamental incompleto. Com Ensino Fundamental completo ou Ensino Médio incompleto, caiu para 10,7%. E, finalmente, em lares chefiados por pessoas com Ensino Médio completo em diante, despencou para 4,7%. A geografia da fome também é outra característica e continua existindo. O número de pessoas sem ter o que comer cresceu em todo o País, mas as desigualdades regionais seguem acentuadas. As regiões Nordeste e Norte são as mais afetadas pela fome.
Em 2020, o índice de insegurança alimentar esteve acima dos 60% no Norte e dos 70% no Nordeste - enquanto o percentual nacional é de 55,2%. Já a insegurança alimentar grave (a fome), que afetou 9% da população brasileira como um todo, esteve presente em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste. O Nordeste apresentou o maior número absoluto de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, quase 7,7 milhões. Já no Norte, que abriga apenas 7,5% dos habitantes do Brasil, viviam 14,9% do total das pessoas com fome no País no período. "Além disso, a conhecida condição de pobreza das populações rurais, sejam elas de agricultores(as) familiares, quilombolas, indígenas ou ribeirinhos, tem reflexo importante nas condições de segurança alimentar. Nessas áreas, em todo o País, a fome se mostrou uma realidade em 12% dos domicílios. Os traço de desigualdade e discriminação estão por toda a parte. Até entre os casais formados por dois homens ou duas mulheres, a condição é mais severa entre as duas mulheres", compara o sociólogo Renato Carvalheira.