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Brasil tem 19,1 milhões de pessoas passando fome. Pernambucano Josué de Castro diz que fenômeno foi criação do próprio homem

Um dos maiores especialistas sobre o estudo da fome no mundo, Josué de Castro teve reconhecimento internacional, mas até hoje ainda é pouco conhecido no Brasil. Saiba mais sobre esse pensador fundamental

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Adriana Guarda

Publicado em 19/12/2021 às 10:15 | Atualizado em 20/12/2021 às 16:53
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Tem gente com fome no Brasil. São 19,1 milhões de pessoas sem ter o que comer: o equivalente a duas vezes a população de Pernambuco. Antes mesmo de completar uma década que foi excluído do Mapa da Fome da ONU, em 2024, o País vive um retrocesso e volta a marcar posição nesse mapa que desumaniza, corrói a cidadania e envergonha a nação. Sem alternativa, as pessoas rompem o tabu e o silêncio de 'não ter'e escancaram suas necessidades pelas ruas. Nos cruzamentos das cidades, placas gritam com todas as letras: "Estou com fome". Dentro dos supermercados, consumidores são abordados por mães e pais de família, pedindo que lhes comprem algum alimento. Pelos corredores da cidade, famílias inteiras se abrigam debaixo de barracas de lona improvisadas, à espera de doações. O retorno do Brasil ao perverso mapa da fome é tema de série de reportagens do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação em várias plataformas. No JC e JC Online, as matérias começam a ser publicadas neste domingo (19) e seguem até a quarta-feira (22). A proposta do SJCC é estimular a discussão de temas importantes para a sociedade, antecipando os debates eleitorais de 2022. No primeiro dia vamos relembrar a importância de Josué de Castro, pensador pernambucano que mergulhou nos estudos sobre a fome e conquistou relevância internacional.

Sabe aquele Josué com quem Chico Science parece conversar na música Da lama ao caos? "Ô Josué, eu nunca vi tanta desgraça, quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça". Nesta letra, o criador do manguebeat está se referindo a Josué de Castro, o maior pensador da fome no Brasil, que foi reconhecido e reverenciado internacionalmente. Apesar de toda a sua fama lá fora, talvez você não tenha ouvido falar sobre ele por aqui. Durante a ditadura militar, o regime tratou de promover o silenciamento da obra de Josué de Castro no País.

Apesar desse movimento, o legado do pernambucano está por toda a parte, inclusive em políticas que se incorporaram à vida brasileira. A criação do salário mínimo, o programa de merenda escolar e a Associação Mundial de Combate à Fome (Ascofam) são algumas das iniciativas implantadas no País.

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PESQUISA Castro apontou que forma de miséria variava em cada região - DIVULGAÇÃO/FUNDAJ

Intelectual inquieto e que não se enclausurava na academia, Josué experimentou a teoria e a prática nos estudos sobre a fome. Médico, filósofo e geógrafo, com mais de 30 livros publicados, o estudioso ficou conhecido, principalmente, pelos títulos "Geografia da Fome" (1946) e "Geopolítica da Fome" (1951). No ano em que o Brasil volta ao mapa da fome, as obras completam 75 e 70 anos, respectivamente.

Sociólogo e presidente do Centro de Estudos Josué de Castro, José Arlindo Soares destaca o olhar inovador do cientista sobre a fome. "Ele conseguiu quebrar o paradigma das referências sobre a fome, ao desnaturalizar o fenômeno que era tratado como se fosse algo produzido pela natureza. O impacto de seus estudos foi expressivo porque mostrou de forma enfática e com dados que a fome tem causas que deverão ser vistas à luz da política", analisa.

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RECONHECIMENTO Estudioso lançou importantes obras sobre a fome - DIVULGAÇÃO/FUNDAJ

Enquanto Geografia da Fome traz um retrato do problema no Brasil, apontando que o problema tem peculiaridades em cada região do País, Geopolítica da Fome foi uma tentativa de internacionalização da primeira publicação.

Com o final da Segunda Guerra, o tema da fome estava em evidência no mundo. Essa conjuntura fez com que o livro fosse traduzido em 25 idiomas. José Arlindo recorda que o prefácio de Geopolítica da Fome foi escrito pelo Prêmio Nobel da Paz de 1951, Lord John Boyd. "Ele destacou o sentido moderno que adquiriu a fome, a partir do uso de indicadores científicos para explicá-la", diz o sociólogo.

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SUSTENTO Josué disse que conheceu a fome nos mangues do Recife - DIVULGAÇÃO/FUNDAJ

No romance autobiográfico "Homens e caranguejos", Josué de Castro diz que conheceu a fome nos mangues do Recife e no Sertão do Nordeste. O mangue é uma alternativa de sobrevivência, que vai buscar o sustento na lama. A descoberta da fome de forma científica veio logo após a sua formatura como médico. Ele foi contratado por um empresário do setor têxtil que queria examinar possíveis causas das doenças nos operários, que diminuíam a produtividade do trabalho.

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Josué de Castro - Divulgação/Fundaj

"Josué de Castro concluiu que não havia doença e que a causa da inanição era a fome em razão dos baixos salários. A partir desta constatação, ele escreveu um trabalho sobre "As condições de vida da classe trabalhadora" e apresentou ao então presidente Getúlio Vargas a proposta de implantar um salário mínimo compatível com as necessidades alimentares dos trabalhadores", observa o sociólogo e estudioso de Josué de Castro.

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Josué de Castro - Divulgação/Fundaj

O cientista também experimentou o reconhecimento internacional. Foi presidente do Conselho Executivo da FAO (1952), indicado ao Nobel de Medicina (1954) e indicado ao Nobel da Paz (1970). No Brasil, foi eleito a deputado federal duas vezes, em 1955 e 1959. Em abril de 1964, teve seus direitos cassados e foi proibido de voltar ao País por 10 anos. Exilou-se na França e encerrou sua vida lá, frustrado por não conseguir retornar à terra natal. Morreu na sua casa, em Paris, em 1973, aos 65 anos, e foi enterrado no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.

Foto: Fundação Joaquim Nabuco/Divulgação
As informações que chocaram os integrantes do Prêmio Nobel em 2019 acompanharam o pernambucano por toda vida - Foto: Fundação Joaquim Nabuco/Divulgação

Frases de Josué de Castro: 

"Viver na opulência num mundo em que 2/3 estão mergulhados na miséria, não é apenas perigoso, é crime".

"A fome não é um fenômeno natural e sim um produto artificial de conjunturas econômicas defeituosas. Um produto da criação humana e, portanto, capaz de ser eliminado pela vontade do próprio homem".

"Foi no Nordeste - nas zonas dos mocambos do Recife e nos chapadões desérticos do Sertão - que descobrimos com angústia o drama da fome. E não só da fome do Nordeste, mas da fome universal".

"Muito mais terrível que um surto epidêmico e de que o flagelo das secas, que dizima de uma vez algumas centenas de milhares de vidas, é esta desnutrição, esta subalimentação permanente, que destrói surda e continuamente toda uma população sem chamar atenção nem despertar nossa piedade".

"Só há um tipo de verdadeiro desenvolvimento: o desenvolvimento do homem".

 

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