"Quem será o próximo a morrer?" Desesperança e medo imperam nas áreas castigadas pela chuva no Grande Recife
Um dia depois das fortes chuvas, os cidadãos se mostraram assustados, cansados e desesperançados com o poder público
Voltar aos locais da Região Metropolitana do Recife onde duas pessoas morreram soterradas por barreiras e arrastadas pelas águas das fortes chuvas que por dois dias assustaram os pernambucanos é encontrar a desesperança. E o medo.
Os cidadãos estão assustados, cansados e desesperançados.
Não acreditam mais em prefeitos, vereadores ou deputados. Não acreditam nos representantes do poder público de forma geral. Principalmente no inverno. A pergunta é sempre a mesma quando os meses de chuva chegam, como agora: quem será o próximo a morrer?
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Qual vizinho, parente, amigo ou conhecido será a próxima vítima das chuvas no Grande Recife? Por onde a reportagem do JC passava, a mesma declaração:
“Estamos abandonados. Ninguém aparece por aqui sequer para colocar uma lona ou ao menos passar um trator para ajudar no acesso, muito difícil em época de chuvas. Essa tragédia que tirou a vida de Nivaldo (o catador de recicláveis Nivaldo Pedro Salviano da Silva, 60 anos), já era esperada porque não há nenhum cuidado com o povo”, criticou a dona de casa Neide da Silva
Neide reside há oito anos na Bondade de Deus, comunidade nos altos de Camaragibe - próximo ao bairro de Céu Azul - que começou com pequenas invasões e hoje já tem mais de 10 mil famílias residindo. Atualmente enfrenta, inclusive, uma ação de reintegração de posse.
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De uma das janelas da ampla residência de alvenaria - segura porque foi erguida numa área relativamente plana - ela vê a destruição provocada pelo deslizamento da barreira que arrastou a residência do vizinho.
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MEDO, MEDO, MEDO
A fragilidade de viver nessas condições, podendo perder bens materiais e a vida em segundos assustou tanto a dona de casa Maria de Fátima que a mudança da localidade foi planejada horas depois do deslizamento.
Ela, o marido e a filha de cinco anos chegaram à minúscula casa, erguida na ponta de uma barreira, há um mês. Saíram do bairro de Sítio dos Pintos, periferia da Zona Norte do Recife, porque não podiam mais pagar o aluguel de R$ 400.
“Não consegui dormir à noite, pensando no que aconteceu. Na forma e rapidez com que aconteceu. Não vou ficar. Tenho medo. É tudo muito abandonado. Para se ter ideia, mesmo depois do deslizamento, nenhum agente da Prefeitura de Camaragibe apareceu por aqui”, lamentou.
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De fato, o local do deslizamento seguia sem nenhum tipo de isolamento ou proteção por lonas. Nem mesmo as casas que aparentam estar sob risco foram identificadas ou os moradores orientados sobre o que fazer para garantir a segurança. Quem saiu, o fez por conta própria.
Aliás, o fez por medo de ser a próxima vítima das chuvas.
DUAS MORTES E CENTENAS DE DESALOJADOS
O município de Camaragibe foi o mais afetado pelas fortes chuvas que atingiram Pernambuco entre a segunda-feira (21/3) e a madrugada desta quarta-feira (23). Segundo balanço divulgado pela Secretaria Executiva de Defesa Civil de Pernambuco (Codecipe), 501 pessoas ficaram desalojadas na cidade, além das duas mortes.
Além do catador de recicláveis Nivaldo Pedro Salviano da Silva, o grande volume de precipitações também provocou a morte do adolescente Felipe Salvador Dias, de 16 anos, que foi arrastado para um canal na área central de Camaragibe. O rapaz estudava na Escola Joaquim Amazonas, no Bairro Novo do Carmelo, na modalidade EJA, e quando voltava para casa, no fim da tarde de segunda (21), caiu num canal e desapareceu.
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NO RECIFE, ALAGAMENTOS E MAIS MEDO
Embora não tenha registrado mortes devido às chuvas, o medo de deslizamentos de barreiras e a certeza de novos transtornos provocados por alagamentos são sentimentos certos entre os moradores das áreas de morros e de regiões com problemas históricos do Recife.
No Córrego do Boleiro, onde em 1996 uma barreira deslizou e arrastou dezenas de casas, provocando a morte de nove pessoas, a chegada das chuvas leva o sossego de quem reside no local.
Nem mesmo a tragédia e as atenções que foram canalizadas para a área por causa dela fizeram a segurança aumentar na área. A mesma barreira que deslizou 26 anos atrás segue perigosa, quase sem proteção e com novas casas sendo construídas no local.
Assim como em Camaragibe, a reclamação sobre a ausência do poder público é grande. “Quase não vemos a prefeitura por aqui. E as ações são muito pontuais, quase sempre de colocação de lonas. A qualquer momento pode acontecer de novo, se a chuva for grande. Todos ficam em alerta porque há muito para ser feito. Faltam lonas e muros de arrimo. Além disso, novas construções irregulares seguem sendo feitas”, alerta o fiscal de transporte público Demário Santana, que todos os dias trabalha nas imediações do local da tragédia de 1996.
Os pontos de alagamento também são criticados pelos cidadãos. Entre eles, um dos mais tradicionais do Recife, o cruzamento da Avenida Caxangá com a BR-101, na Zona Oeste da capital.
Na terça (22), a área mais uma vez ficou intrafegável devido ao acúmulo de água. “Todo inverno é assim. Todo ano é a mesma coisa. Ninguém aguenta mais. Sabemos que a prefeitura não resolve porque não quer. Há solução. E não é só no Recife”, criticou o operador de máquinas Marcos Josias, que todos os dias passa no trecho.