Desde que foram acordados na noite de quinta-feira (27) com o estrondo no Edifício Leme, em Olinda, moradores de prédios vizinhos, também condenados, não conseguiram mais pregar os olhos. A dicotomia da vida sob esse teto, onde o direito à moradia não chega, tornou-se mais presente: há alívio, por não estarem nas ruas, e medo, por saberem que, a qualquer momento, podem ser as próximas vítimas de desabamentos.
A reportagem se aproximava do local do acidente, que deixou três mortos até esta sexta-feira (27) e onde quatro desaparecidos ainda são procurados, quando recebeu acenos de crianças, idosos e adultos que ocuparam o Edifício Alan Antônio em 2021. O imóvel foi interditado, há anos, pela Defesa Civil pelo seu alto risco estrutural, e permanecia vazio até então.
“Todo mundo aqui é adulto e sabe que, Deus nos livre, aqui corre o risco de cair e desabar, mas queremos ter uma segurança se for para sair daqui”, disse Albério Simões da Silva, 50, que diz cuidar do prédio como pode. “Quando a gente chegou, estava pior. A gente limpou, tirou o tráfico de drogas que tinha aqui. Mas a Defesa Civil nunca veio fazer nem um cadastro.”
Nos 24 apartamentos, estão pessoas em vulnerabilidade que, em sua maioria, trabalham informalmente com reciclagem. Elas temem ser despejadas do local e pedem uma solução habitacional ao menos temporária, como um auxílio moradia. É que, mesmo com as infiltrações, rachaduras e desprendimento do teto, o prédio em risco foi o primeiro lar minimamente digno de muitos.
“A primeira vez que consegui fazer feira aqui, eu chorei de alegria, porque antes eu estava passando fome”, contou Silene Martins, 48, que morava na Avenida Perimetral com os três filhos e o neto até o fim do auxílio emergencial dado durante da pandemia da covid-19. “Quando acabou, não pude mais pagar o aluguel de R$ 350. Vim com medo, porque nunca entrei em invasão, mas não tinha o que fazer.”
A invasão ao prédio desagradou a vizinhança, que, segundo os ocupantes, constantemente protesta contra a permanência deles no local. “É melhor estar debaixo de uma ponte do que correndo risco de vida”, gritou, contra eles, uma idosa que passava pela rua enquanto a reportagem do JC visitava o local.
A algumas ruas dali, outro exemplo. No Edifício Marquês Felipe, em frente ao Canal do Fragoso, não há sequer grades bloqueando a entrada e as janelas do imóveis e as antigas varandas foram fechadas por tapumes improvisados e tijolos. É nesse espaço, de aparência insalubre e condenado há mais de 15 anos, onde moram sete famílias com quatro crianças.
A catadora Jucilene Conceição, de 50 anos, tenta esconder as ruínas do espaço com arte - ao desenhar corações coloridos nos corredores do apartamento que ocupa. Antes de entrar no prédio, ela morou nas ruas durante quatro anos. “Aqui, fico mais à vontade, porque é perigoso ficar na rua. Mas dá medo de morar aqui. Quando chove, a água escorre pelo telhado”, relatou.
“A casa agora é sua” - dizia a camiseta que, por acaso, o marido de Jucilene, o também catador Gilvan Pereira, de 27 anos, estava usando na manhã desta sexta-feira (28). Mas ele jamais teve uma. Onde está, não têm água encanada, o que o faz transportar baldes dia e noite para realizar atividades básicas, como cozinhar e tomar banho.
Parte do revestimento de gesso do banheiro da vizinha, Janaina da Silva, 42, desabou há algumas semanas. Por sorte, ninguém estava nele. A cozinha está completamente infiltrada: desde o teto, até as paredes. Também é difícil manter a limpeza, com ratos subindo pelas escadas. “A gente quer um auxílio para sair daqui”, pediu.
DESABAMENTO DE PRÉDIO EM OLINDA: REFLEXO DO PROBLEMA HABITACIONAL
Estes estão entre os prédios construídos por volta de 1980 que correm risco de desabamento em Olinda. Em 2020, a Prefeitura de Olinda informou que eram 98 edifícios "caixão", que não possuem pilotis. Pela péssima estrutura em que se encontravam, foram foram interditados em 2001 pela Defesa Civil.
Contudo, em muitos casos, como nos relatados na reportagem, as seguradoras não impediram a ocupação. As mortes por desabamento não são novidades na região. Dois ruíram em 1999: o Edifício Éricka, que deixou quatro mortes, e um dos blocos do Edifício Enseada de Serrambi, que vitimou seis pessoas. Outro caiu em 2017, mas sem deixar vítimas.
O advogado José Antônio Alves de Melo Junior, especializado em direito habitacional, defende que é responsabilidade, também, do poder público impedir que os prédios condenados sejam invadidos e agilizar a indenização dos antigos moradores para, assim, demolir as estruturas em risco.
"Deveria fiscalizar e usar poder de polícia, se for o caso. [...] Dinheiro tem para indenizar e demolir na Caixa, tem um fundo para isso. Está na mão do governo federal para solucionar isso como um todo", afirmou.
As ocupações também são consequência da má distribuição urbana de Olinda, que possui uma grande demanda habitacional por ter a maior densidade demográfica (quantidade de moradores por área) de Pernambuco e a quinta do país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Para Socorro Leite, diretora executiva da Habitat para a Humanidade Brasil, o caso revela a falta de “compromisso e investimentos do poder público para a garantia do direito à moradia, para identificar outras situações como esta e ter um planejamento real para atender a essas demandas”.
“É importante destacar que essa tragédia é reflexo da falta de politica habitacional. Pessoas que moram nessa situação, assim como as que moram em áreas com risco de deslizamento, não escolhem morar assim. Ninguém escolhe morar em área de risco”, pontuou.
O problema se integra, ainda, ao déficit habitacional do Estado, calculado em mais de 326 mil unidades, segundo levantamento feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) junto à Ecconit Consultoria Econômica.
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