População de rua do Recife chega a 1,8 mil com maioria de homens e negros
Dados foram revelados pelo Censo da População de Rua do Recife, estudo inédito feito pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) em parceria com a Prefeitura
Há 1.806 pessoas em situação de rua na capital pernambucana, segundo o Censo da População de Rua do Recife. O estudo, inédito no Estado, foi tocado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) em parceria com a Prefeitura do Recife e divulgado na última sexta-feira (25).
O número é 30% maior que o da última contagem feita pela gestão municipal. Em 2019, eram 1.400 pessoas vivendo ao relento. A metodologia utilizada à época, contudo, foi diferente e apenas quantitativa.
“A Prefeitura do Recife vai ter agora um instrumento mais sistematizado, teorizado, uma racionalidade que não vai estar só no número, mas na análise qualitativa para a construção de políticas públicas mais efetivas”, disse o professor Humberto Miranda, coordenador do Instituto Menino Miguel, da UFRPE.
O recenseamento foi feito entre setembro e outubro de 2022 com pessoas que usam as ruas para dormir ou tirar o sustento, de forma permanente ou temporária. Após a contagem, em dezembro e janeiro deste ano, foi aplicado o formulário de pesquisa amostral sociodemográfica nas ruas da cidade durante à noite, nas unidades de acolhimento e nas quatro unidades do Centro Pop do município.
“A forma como o documento foi construído também foi muito importante, porque contou com a participação de profissionais e colaboradores que já tem a vivência com a população de rua, o que tornou o processo muito mais valoroso. O documento será essencial para agregar valor às nossas atividades e qualificar os nossos serviços”, afirmou a secretária Ana Rita Suassuna, da SDSDHJPD.
PERFIL DA POPULAÇÃO DE RUA DO RECIFE
O Censo 2022 mostrou que essa população tem cor, gênero e idade bem definidos. A maioria, 76%, é do sexo masculino, 80% autodeclarou-se preta ou parda e 83% é adulta. Apesar dos homens cisgêneros representarem 75%, a presença de mulheres cisgêneros e de mulheres trans têm crescido, correspondendo a 25%.
Foi constatado que um quarto das pessoas estava na rua há menos de um ano, o que indicou uma condição recente. Cerca de 19% vive entre um e três anos nas ruas, 13% entre três e cinco anos e 35% há mais de cinco anos. Quase metade veio de outras cidades, a maioria (33%) em busca de emprego. Conflitos familiares são o principal motivo (50%) de atração às ruas.
“As pessoas em situação de rua estão e são provenientes de contextos periféricos e de trajetórias intergeracionais de violação de direitos”, disse o estudo. “Nesse sentido, é sempre importante reafirmar que sociedades extremamente desiguais não são capazes de produzir condições de vida digna e partilhadas.”
A região com maior concentração dessa população (623) é a Região Político-Administrativa (RPA 1), que compreende a região central da cidade. Depois, está a RPA 6, na Zona Sul do Recife.
CRIANÇAS E ADOLESCENTES: MÚLTIPLAS VIOLAÇÕES
Ainda que as crianças e adolescentes sejam o grupo etário com o menor percentual da população de rua na cidade (5,1%), a presença deles representa uma violação de direitos ainda mais intensa. Exemplo disso é que 90% não frequentam instituições de ensino regular, como obriga a legislação.
“Rapaz, para mim que passei mais de um ano e pouco na rua, a rua não é nada bom”, dise um dos adolescentes entrevistados. “Só tem tráfico. Só tem morte. A pessoa não pode estar deitado no canto que a outra pessoa chega para mexer com o cara. Isso daí eu tiro por mim.”
A maioria dos menores é do sexo masculino (75%), mas o estudo chama atenção para a vulnerabilidade marcada pela violência que é vivida pelas meninas. "Quando eu era pequena, eu saía muito e passei por uma situação que quase que morria. Mas, graças a Deus, Deus me deixou, né”, contou uma das adolescentes acolhidas.
“Pegavam mulher grávida e estupravam. Já mataram um monte de gente. Abusaram do meu irmão de nove anos. Degolaram o pescoço dele, mas Graças a Deus ele está vivo. Fui para rua, passava necessidade, tenho meu filho de dois anos e dois meses, porque o pai dele não queria dar a pensão", completou.
AUSÊNCIA DO PODER PÚBLICO
Os pesquisadores chamaram atenção para o fato de que “não há soluções simples” para uma questão complexa; todavia, a ausência do poder público transparece nos números. Um exemplo é que 48% da população de rua do Recife não recebe benefícios sociais, como o Bolsa Família, mesmo tendo direito a ele. Ainda, grande parte sequer tem um local para fazer as necessidades fisiológicas, tendo que defecar ou urinar na própria rua.
“Moradia” aparece como a principal necessidade das pessoas em situação de rua durante as entrevistas, seguido por “trabalho e renda”. Ambos são problemas históricos em Pernambuco, que hoje tem um déficit habitacional de 326 mil moradias e apontou com a pior taxa de desemprego do País em agosto de 2023, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Essa pesquisa nos despertou a sensibilidade que o problema das pessoas em situação de rua é de todos nós, executivo, legislativo, judiciário, da Sociedade Civil Organizada, mas também do cidadão que transita pelas rua do Recife e que não pode se conformar com essa situação”, disse Humberto.
A UFRPE também se colocou à disposição de outras prefeituras que queiram contabilizar a sua população de rua e já desenvolve, hoje, o Plano Municipal das Crianças e Adolescentes em Situação de Rua.
PREFEITURA PROMETE MELHORIAS
Hoje, a rede de acolhimento institucional da Prefeitura do Recife não abrange toda a população de rua. São 619 vagas, das quais 80% delas estão ocupadas, em 17 locais diferentes. Entre eles, estão as duas pousadas credenciadas que, juntas, disponibilizam 100 vagas.
Com base no Censo, o município lançou novas iniciativas para a população em situação de rua. Uma delas é o projeto Moradia Primeiro Recife, que pretende ofertar 50 moradias permanentes para famílias nessa situação que não aderem aos atuais modelos de acolhimento.
Outra promessa é a construção do Centro Popinho, uma unidade do Centro de Referência de Atendimento à População em situação de Rua (Centro Pop) destinada ao atendimento de crianças e adolescentes, entre 11 e 17 anos, que estejam dormindo nas ruas desacompanhados de adultos responsáveis.
Também foi anunciado o Programa Pão e Letra para promover ações educativas e comunicativas com a população em situação de rua do Recife, focadas em práticas de cuidado, alfabetização, letramento e promoção da cidadania, ofertando bolsas de estudo para garantir a permanência.