A cada eleição, seja municipal ou federal, o debate sobre a inserção igualitária da mulher na política ainda é uma temática a ser superada. No Brasil, as mulheres são 52,5% das eleitoras, mas essa representatividade não é traduzida nos cargos políticos. Dentro desse cenário, quando há um recorte sobre a participação das mulheres negras, os números são ainda menos expressivos e mostram que elas não só precisam lidar com uma estrutura patriarcal dentro dos espaços de poder, como também precisam lidar com o racismo estrutural - expressão que parece ter surgido em 2020, mas que está em questão desde os tempos da escravidão no país.
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Nas eleições de 2016, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dos 184 prefeitos eleitos em Pernambuco, cinco são negros. Destes, somente uma é mulher - a prefeita do município de Lagoa do Carro, Mata Norte do Estado, Judite Botafogo (PSDB), que disputará a reeleição neste ano. Quando se trata da representação no legislativo, dos 119 candidatos negros a vereador eleitos nos municípios do Estado, apenas nove são mulheres.
“Esse percentual de representação das mulheres, sobretudo das mulheres negras, está muito longe de ser adequado. E isso abrange a direção de empresas, o serviço público em geral, não é só no poder legislativo. Não existe uma representatividade aproximada, a sociedade brasileira é muito preconceituosa, machista e racista. Dentro dessa estrutura, as mulheres são prejudicadas”, analisa o procurador regional eleitoral de Pernambuco, Wellington Saraiva.
Para Shirlene Marques, jornalista, bacharela em direito e associada à Abayomi Juristas Negras, é necessário fazer uma análise ainda mais profunda sobre a participação das mulheres negras na política e isso perpassa pela construção dessa figura feminina desde o período colonial, com a escravização da população negra.
"São questões históricas, em que estas mulheres foram colocadas em papéis que uma mulher branca, por exemplo, não seria colocada. Papéis de exploração e de desqualificação enquanto ser. Para que essa mulher esteja ocupando os espaços de poder, tanto políticos quanto jurídicos, primeiro ela tem que ter consciência do seu papel na sociedade, enquanto representante do povo”, ressalta.
Neste caso, não bastaria apenas desejar disputar uma corrida eleitoral. “O primeiro passo é o empoderamento, a consciência racial, para depois apoderar-se de espaços. Saber que pode lutar pela justiça, pelos seus direitos e dos outros na política”, afirma Marques.Isso significa que não se trata apenas de uma questão numérica sobre quantas mulheres negras se candidatam a prefeituras e câmaras de vereadores, mas de como estas mulheres são vistas pela sociedade.
“Quando fazemos uma análise da escravização, encontramos essas mulheres negras, mesmo que libertas, cuidando dos filhos das mulheres brancas, das senhoras de engenho, e que também sofriam abusos dos homens brancos. São resquícios que estão na nossa sociedade. Existe uma fragmentação dentro dessa estrutura, porque as mulheres negras demoram a ter acesso a educação, e ainda estão em menor número enquanto fazedoras de criticidade”, explica Shirlene.
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No mês de julho, quando que foi celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, algumas organizações de mulheres em apoio à iniciativa do Projeto Mulheres Negras e Democracia lançaram a campanha virtual “Eu Voto em Negra”, com o objetivo de transformar essa realidade não apenas nas eleições de 2020.
"Esse é um momento importante para os partidos mostrarem se são antirracistas ou não. Apoiar candidaturas de mulheres negras significa representatividade da maioria da população brasileira. E a campanha vem para estimular a sociedade a refletir sobre a necessidade de uma maior representatividade nos espaços de decisão de nosso país", disse Piedade Marques, da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco.
O Mapa Mulheres na Política 2019, formulado pela Organização das Nações Unidas e da União Interparlamentar, mostra que o Brasil ocupa a 134ª posição em termos de representatividade feminina entre 193 países pesquisados, com 15% da participação das mulheres. “Nosso objetivo é provocar e visibilizar a sub-representação das mulheres e das mulheres negras na política. Em uma sociedade racista e patriarcal, existe a ideia cultural de que esse espaço não pertence a elas e que são mais incapazes. Isso se reflete nas relações das grandes organizações, sobretudo nos partidos”, enfatiza Graciete Santos, presidente da Casa da Mulher do Nordeste.
No Brasil, apenas 77 mulheres são deputadas e apenas 12 senadoras. O governo tem apenas duas mulheres dos 22 ministros. Quando tratamos de Mulheres Negras a situação é mais preocupante, como ter representatividade? Vamos conhecer a campanha #EuVotoEmNegra
— Casa da Mulher do NE (@CMNordeste) July 23, 2020
PARTIDOS
De acordo com os dados estatísticos disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a última eleição municipal, em 2016, é possível notar uma discrepância entre os candidatos declarados negros, que foram eleitos. O PSB, por exemplo, que conta com 72 prefeitos em Pernambuco, sendo a maior legenda com chefes do executivo municipal do Estado, também é o partido que mais elegeu postulantes negros em números absolutos.
Foram 16 candidatos negros - sendo um vice-prefeito e 15 vereadores. Dentro desse bloco, apenas duas vereadoras são mulheres negras. Por outro lado, foram eleitos 235 candidatos declarados brancos entre prefeitos, vice-prefeitos e vereadores.
“Uma mulher negra quando se candidata, ela estimula outra mulher a se candidatar, é uma questão simbólica importante. Os partidos precisam trazer isso para a centralidade, pois a estrutura partidária ainda é machista e, consequentemente, racista. Essa pessoas não estão em maioria na decisão dos partidos”, declara Graciete Santos.
O debate começa também pelo financiamento das campanhas, que foi pauta no TSE no dia 30 de junho. O presidente do órgão, o ministro Luís Roberto Barroso, votou favorável à distribuição proporcional do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral para candidatos negros, em resposta a uma consulta feita pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ). Em sua fala, Barroso afirma que o racismo está inserido nas estruturas políticas, sociais, econômicas “e no funcionamento das instituições, o que permite a reprodução e perpetuação da desigualdade de oportunidades da população negra”.
Com o pedido de vistas do ministro Alexandre Moraes, para ter mais tempo para análise, a discussão está suspensa por tempo indeterminado. Benedita da Silva também tenta pleitear que a cota mínima de 30% de candidaturas femininas, determinada pela legislação eleitoral para os cargos de vereadores, no caso destas eleições, também seja estendida para candidaturas negras.
"O que nós temos hoje, é uma estrutura partidária antiquada, e, no fim das contas, acaba sendo pouco democrática, no sentido de que em muitos partidos quem acaba discutindo as candidaturas e o financiamento delas são algumas lideranças partidárias. Nem todos os candidatos têm espaços adequados nem financiamento, e você não faz campanha sem dinheiro, ainda que esse ano seja uma eleição atípica por causa do coronavírus”, afirmou o procurador regional eleitoral Wellington Saraiva.
REPRESENTATIVIDADE
Resistência e sobrevivência. Duas palavras postas na mesma frase quando são questionados os obstáculos enfrentados por ser uma mulher negra. A falta de representatividade dessa parcela da população se refletindo, inclusive, nas problemáticas locais como o acesso a educação, saúde, emprego e renda. “Quando as mulheres vão para um lugar em que não se veem, acabam não se importando tanto, não identificam sobre quem irá votar. Mas nós precisamos nos apropriar desse poder e ser candidatas de verdade dos partidos, dizer que temos histórias de luta e propostas reais para a cidade”, afirma Suzineide Rodrigues, pré-candidata a vereadora do Recife, pelo PT.
“Poucas mulheres negras têm condição de estudar, mas quando encontram uma pessoa como alternativa para ser essa voz, dizendo que mulheres negras e periféricas podem estar lá também, o cenário muda”, complementa. Do bairro de Brasília Teimosa, Zona Sul do Recife, Suzineide é bancária e está disputando uma eleição pela primeira vez.
“Meu pai era o que antigamente chamávamos de biscateiro. Estávamos sempre lutando por água, por luz, fazendo sacrifícios para estudar. Desde pequena entendi que precisávamos lutar para sobreviver e via que, nas comunidades, as mulheres negras são as que mais sofrem. Sou bancária e sempre sofri preconceito”, relembra.
A ampliação destes espaços de poder não se trata apenas do fato de se reconhecer representada, mas é preciso criar um ambiente em que as mulheres negras e suas propostas sejam acolhidas. “As pautas prioritárias acabam sendo invisibilizadas, porque pedem nosso voto, mas não nos priorizam. O espaço dentro da política, ele nunca foi acolhedor para as mulheres, existe o machismo tanto dentro de partidos de direita quanto de esquerda”, declara a professora Kátia Cunha, pré-candidata pelo PSOL à Prefeitura de Goiana, no Grande Recife.
Kátia vivenciou nas eleições de 2018 para o legislativo estadual uma experiência pioneira: o mandato coletivo das Juntas. O grupo também é formado pela estudante de letra Joelma Carla, pela jornalista Carol Vergolino, pela ambulante Jô Lima e pela advogada Robeyoncé. “Nós precisamos estimular o interesse dos jovens, principalmente aqueles irão votar pela primeira vez. A política precisa ser composta por vários rostos, não só de mulheres negras, mas que estejam os LGBTs, ambulantes, e toda a diversidade existente na sociedade. Não podemos olhar para um parlamento e só ter os mesmos homens brancos, que herdam as histórias políticas dos pais e avós e não representam os interesses de todos", declara.
Para a educadora social Elzanira da Silva, que mora há mais de 30 anos na comunidade Vila Santa Luzia, no bairro da Torre, Zona Norte do Recife, o voto na mulher negra representa justamente a força de resistência e que também parte da reflexão das próprias mulheres se reconhecerem como negras, do ponto de vista de identidade.
Ela conta que, quando era presidente da do Centro de Assistência Social Popular de Pernambuco (Cepas), muitas pessoas chegavam ao local procurando pela presidente, por não reconhecerem que um mulher negra e pobre poderia ser representante de instituição. “Já sofri muito preconceito, principalmente quando estamos em um lugar de direito. Para você ter uma ideia, faço faculdade de serviço social e sou a única mulher negra assumida como essa identidade mesmo. Então, tenho muita vontade de ver mulheres negras no poder, seja municipal, estadual ou federal”, afirma Elzanira.
A campanha #EuVotoEmNegra é uma realização da Casa da Mulher do Nordeste (CMN), Centro das Mulheres do Cabo (CMC) e Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE). Em parceria com a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Rede de Mulheres Negras do Nordeste, Enegrecer a política e Meu Voto será Feminista. E o apoio do Fundo de Mujeres Del Sur, uma fundação que promove os direitos das Mulheres e pessoas LGBTQI+ na Argentina, Uruguai e Paraguai.
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