A atividade turística foi uma das mais afetadas pela pandemia da covid-19. Também é a que possui um dos maiores potenciais para alavancar a retomada econômica. Precisa, no entanto, reconstituir-se sobre bases mais amplas e menos desiguais. Como fazer as receitas geradas pelo turismo se refletirem em melhores índices de desenvolvimento humano e qualidade de vida para o cidadão é a resposta que os próximos gestores municipais precisam encontrar. A integração metropolitana, com diversificação de rotas e envolvimento da comunidade, pode ser parte da solução, como mostra a penúltima reportagem da série Desafios Urbanos.
Para entrar e sair de casa todos os dias, a pescadora Severina Helena da Conceição, 62 anos, precisava saltar o esgoto na porta. Com a idade avançando e a flexibilidade reduzida, o jeito foi se reunir com os vizinhos e tirar R$ 200 da aposentadoria de um salário mínimo para providenciar uma calçada e não ter que pisar na lama. O cheiro fétido, esse não teve jeito. “É dia e noite, incomoda demais”, queixa-se.
A poucas ruas de distância, é Josefa Maria do Nascimento, 43, quem pena com a falta de saneamento, que já afetou irreversivelmente sua saúde. Apesar de viver tentando driblar as poças de água suja, contraiu esquistossomose. As complicações da doença a impediram de seguir trabalhando como camareira de uma pousada. Hoje, para sobreviver, mantém um fiteiro na janela do “puxadinho” de frente para o mangue, onde acumulam-se palafitas. “Essa aí é a nossa piscina”, diz, em tom de ironia.
Vizinha de Josefa, a ajudante de cozinha Paula Daniele da Silva, 19, divide com outros sete parentes e o sobrinho pequeno um barraco com piso de cimento, em que o mobiliário se resume ao sofá rasgado, à televisão antiga de tubo, um fogão enferrujado e duas camas de casal para abrigar toda a família. O banheiro é improvisado em um corredor nos fundos, sem pia e com uma água turva parada embaixo do chuveiro. Medidas de higienização contra a covid-19 neste ambiente são uma abstração, tão grande quanto a presença do poder público por ali, em qualquer instância. “Não temos direito a nada. Não tem estrutura, não tem lazer, nem pra gente nem pros meninos. É uma desilusão só”, sentencia.
Severina, Josefa e Paula vivem a menos de um quilômetro da vila bem equipada, com lojas de grife, praças, bares e restaurantes da moda que compõem o cenário de um dos destinos turísticos mais cobiçados do País. Quem vai a Porto de Galinhas e se hospeda nos hotéis e resorts à beira-mar dificilmente conhece as comunidades invisibilizadas por trás do cartão-postal. Convive, no entanto, com seus moradores. Em Salinas, Pantanal e Socó estão boa parte dos 25 mil trabalhadores que servem os visitantes e dependem direta ou indiretamente do turismo em Ipojuca, município onde se localiza o famoso balneário do Litoral Sul de Pernambuco.
São vidas que contam e que precisam ser contadas. “Esse lugar também é nosso. Necessitamos de infraestrutura, educação e oportunidades para as crianças e jovens”, crava Suzanete Maria da Silva, 37, nascida no Socó e monitora da ONG Rodas da Liberdade, que promove o acesso de pessoas com deficiência à praia.
O apelo de Suzanete sintetiza um dos principais desafios dos próximos gestores de cidades com potencial turístico na Região Metropolitana do Recife (RMR): o de tornar a atividade fonte de qualidade de vida para o cidadão. Uma urgência que se acentua com a pandemia.
De março a setembro deste ano, o setor acumula perdas de R$ 6 bilhões no Estado, além de registrar o fechamento de 1,2 mil estabelecimentos com vínculos empregatícios. Até agosto, ainda houve a destruição de 108,9 mil empregos formais no setor, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). O baque é grande e o setor deve levar pelo menos dois anos até recuperar patamares “normais”.
IMPACTO DA PANDEMIA
Em Ipojuca, 40% dos trabalhadores da hotelaria foram demitidos. Mas mesmo antes do coronavírus, as receitas da cidade não se traduziam, necessariamente, em maiores benefícios para a população. Com arrecadação total de R$ 865,5 milhões em 2019 e o maior PIB per capita de Pernambuco (R$ 115.089,32), o município tem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,619, considerado médio. O indicador é ligeiramente menor que o registrado em territórios de desempenho econômico notadamente mais frágil, como a Ilha de Itamaracá (IDH de 0,653), no Litoral Norte, cujo PIB per capita é de apenas R$ 9.282,99. “Falar que a atividade no Litoral Sul é mais ‘desenvolvida’ do que no Norte deve ter como base a inclusão social e não somente a melhoria do capital enquanto recurso produtivo”, explica o professor do departamento de Hotelaria e Turismo da UFPE, Luís Souza.
Apesar de mais contundente, por se tratar da região turística mais consolidada do Estado, a desigualdade, obviamente, não é exclusiva de Porto de Galinhas. Ainda no Litoral Sul, o eldorado litorâneo materializado no bairro planejado do Paiva, no Cabo de Santo Agostinho, convive com o saldo de favelização e problemas socioeconômicos deixados pelas desmobilizações das grandes obras de Suape em praias antes de veraneio, como Gaibu e Enseada dos Corais.
DEGRADAÇÃO
Em Jaboatão, a degradação da infraestrutura levou ao fechamento de grandes equipamentos hoteleiros e fez a cidade perder relevância, apesar de contar com atrativos históricos como o Monte dos
Guararapes e uma extensa área rural, que ocupa 73% do seu território.
O Recife, por sua vez, encara a queda de posições no turismo de negócios diante de outras capitais do Nordeste e tenta reposicionar-se no segmento de lazer, embora a deterioração seja visível no Bairro do Recife, sobretudo à noite. Principal cartão de visitas da capital, o calçadão de Boa Viagem, Pina e Brasília Teimosa também clama por reparos.
Na vizinha Olinda, fora do período de Carnaval, o turismo praticamente se resume ao Sítio Histórico, onde o visitante não passa mais que algumas horas.
Formado por seis municípios (Paulista, Abreu e Lima, Igarassu, Itapissuma, Itamaracá e Goiana), o Litoral Norte luta para se reerguer desde o ostracismo a partir da década de 1990 e do aprofundamento de gargalos sociais, como a ocupação desordenada e a violência urbana.
Já Araçoiaba, Moreno e São Lourenço da Mata são ilustres desconhecidas, até mesmo dos pernambucanos, quando se trata de atividade turística.
Nem precisa ser especialista no setor para constatar que atrações há de sobra em todas essas cidades. Falta encarar o turismo como motor de desenvolvimento sustentável com uma perspectiva de integração metropolitana, gestão profissional e governança pública e privada. É o que sugere o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) da RMR.
Uma das propostas do documento é a ampliação da oferta turística, com formação de novos roteiros, que aproveitem as potencialidades principalmente dos municípios mais a Oeste, para promover também o turismo rural, ecológico, de aventura, histórico e cultural, além do consolidado binômio sol e mar. “O Cabo, por exemplo, tem o Parque Metropolitano Armando Holanda Cavalcanti e uma comunidade fortíssima de artesãos de cerâmica. São Lourenço da Mata e Moreno contam com um patrimônio ambiental riquíssimo, dentro de áreas de preservação de mananciais, lagos com represas, matas e antigos engenhos. Você ainda pode integrar esse turista à rede de comércios e serviços locais, levando-o a uma feira ou a um shopping”, enumera o arquiteto e urbanista Geraldo Marinho, coordenador da equipe técnica do consórcio Ceplan/Gênesis responsável pela elaboração do PDUI/RMR.
DIVERSIFICAÇÃO
Assim como fortalecer novos negócios dentro da cadeia produtiva do turismo, os objetivos dessa diversificação de agenda na RMR são aumentar o tempo de permanência e gasto médio do visitante, o que traria impactos positivos diretos sobre a economia das cidades. Segundo dados de 2019 da Empresa de Turismo de Pernambuco (Empetur), o turista costumava passar 6,5 dias, com gasto médio diário de R$ 241,38, em municípios indutores da atividade turística, como Ipojuca. “Os [gestores] que serão eleitos, se tiverem um mínimo de noção econômica, verão o turismo como uma ‘galinha dos ovos de ouro’, uma vez que no próximo ano as receitas tendem a cair muito, sobretudo as oriundas das transferências intergovernamentais [repassadas por Estados e União para os municípios]”, atesta o professor do Departamento de Hotelaria e Turismo Alexandre Cezar.
Com uma segunda onda de contaminação na Europa e o fluxo de visitantes internacionais quase zerado, a estratégia também é essencial para disputar o turista brasileiro, que agora viajará mais pelo País. “Em um cenário de competição acirrada entre os destinos, é preciso pensar também em promoção e capacitação de trabalhadores do setor”, afirma a consultora Jeanine Pires, sobre dois dos pilares de sustentação do turismo.
O terceiro é formado pela infraestrutura e serviços básicos de apoio, que dependem de investimento público. Se já eram escassos os recursos destinados ao turismo pelas prefeituras, tendem a ser ainda mais reduzidos com a pandemia, que direcionou os gastos para a saúde. Levantamento feito pela reportagem do JC mostra que o montante previsto para o turismo não costuma superar os 2% do orçamento total na maioria das cidades da RMR.
A saída, na visão de Marinho, é trabalhar com parcerias público-privadas em “iniciativas focadas e com efeito multiplicador” que exijam aportes mais modestos, evitando ideias “mirabolantes”. “É possível estimular uma família proprietária de um engenho ou um território quilombola e fomentar essa cadeia, de forma a integrar o pequeno e o grande empreendedor, fortalecendo a comunidade como um todo. Também aposto muito no potencial da nossa Mata Atlântica”, aponta.
O urbanista se refere a projetos como o Trilhas Ecoverdejante, que promove ações socioambientais em meio a passeios na Área de Preservação Ambiental (APA) Aldeia Beberibe. Nascido e criado na zona rural de Camaragibe, o microempreendedor Anderson Caetano comanda a iniciativa com oito monitores de áreas diversas de conhecimento, a maioria moradores do entorno da APA. “As nossas paradas para alimentação também são nos estabelecimentos locais, para estimular outros pequenos negócios”, conta Caetano, acrescentando que as atividades incluem reflorestamento de espécies nativas, além de limpeza e sinalização, em parceria com outras empresas e projetos locais. Como parte das trilhas está em área privada, no valor dos roteiros, os visitantes pagam uma taxa de preservação destinada à manutenção da estrutura. Um círculo virtuoso de sustentabilidade que tem tudo para ser replicado.
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