Procurador pede arquivamento de inquérito contra advogado que criticou Bolsonaro
O advogado usou expressões como ''omisso'' e ''criminoso'' para se referir ao presidente
Na contramão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que determinou a abertura de um inquérito para investigar o advogado Marcelo Feller por críticas dirigidas ao presidente Jair Bolsonaro no quadro "O Grande Debate", da emissora CNN, a Procuradoria da República no Distrito Federal se manifestou pelo arquivamento do caso. Em parecer enviado ao juízo da 12ª Vara Federal do Distrito Federal nesta quinta-feira, 21, o procurador João Gabriel Morais de Queiroz avalia que não há indicativo de crime a ser investigado, sob pena de constrangimento ilegal.
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Para o advogado Alberto Zacharias Toron, que defende Marcelo Feller no caso, a manifestação reforça e "independência funcional" do Ministério Público Federal "O MPF revela uma independência funcional que resgata os valores mais importantes da nossa democracia e sepulta a opressão pela via da repressão policial", disse.
O inquérito foi aberto em agosto de 2020 por ordem do próprio ministro da Justiça, André Mendonça, que usou como fundamento jurídico a Lei de Segurança Nacional (LSN), sancionada durante a ditadura militar para listar crimes que afetem a ordem política e social - incluindo aqueles cometidos contra a democracia, a soberania nacional, as instituições e a pessoa do presidente da República. Desde o início da pandemia, o dispositivo foi encampado pelo governo em pelo menos quatro outras ocasiões, a maioria contra profissionais da imprensa.
No caso em questão, o artigo citado é o 26, que prevê como crime "caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação". A pena é de um a quatro anos de prisão.
Na manifestação, a Procuradoria observa que a LSN não pode ser usada para "constranger ou perseguir" opositores políticos, por mais "ásperas" que sejam suas críticas. "Apesar dos arroubos antidemocráticos e da proliferação de defensores da ditadura observada nesses últimos anos, (ainda) vivemos, no Brasil, um sistema democrático de direito e, portanto, é com base nesse contexto democrático que a LSN deve ser interpretada e aplicada", pontua o procurador.
No documento, Queiroz afirma ainda que o uso do dispositivo deve ser reservado a "casos extremos" em que houver propósito de atentar contra a segurança do Estado e potencialidade de efetivamente cumprir esse objetivo. O procurador aproveitou para fazer uma defesa da liberdade de manifestação.
"É sempre bom relembrar que num Estado Democrático de Direito a liberdade de expressão é um direito fundamental e, dessa forma, deve ser assegurado o seu exercício ainda que vá de encontro aos interesses dos governantes de ocasião, não podendo ser tolerado o uso da força policial e, em última instância do direito penal, para coibir manifestações pacíficas e exercidas dentro da lei tão somente por conter críticas a autoridades públicas", escreveu.
Entenda o caso
O advogado criminalista Marcelo Feller está sendo investigado por declarações feitas durante uma das edições do quadro "O Grande Debate", da emissora CNN, por onde teve uma breve passagem. A atração reúne dois debatedores para defender posições contrárias sobre um tema previamente definido pela produção do programa. No dia 13 de julho, o assunto escolhido foi a atuação do governo federal na pandemia da covid-19 e o impacto dela sobre a imagem das Forças Armadas.
O tema foi definido na esteira da fala do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, de que Exército está se associando a um "genocídio", em referência à presença de militares no Ministério da Saúde durante a crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. O ministro comentava a ausência de um titular na pasta, então comandada interinamente pelo general Eduardo Pazuello desde a queda do médico Nelson Teich mais de 50 dias antes.
Na ocasião, o advogado citou o estudo "Mais do que palavras: discurso de líderes e comportamento de risco durante a pandemia", desenvolvido em parceria por pesquisadores da Universidade de Cambridge e da Fundação Getulio Vargas. A pesquisa concluiu que atos e discursos do presidente Jair Bolsonaro contra o isolamento social como estratégia de combate à pandemia podem estar por trás de pelo menos 10% dos casos e mesmo de mortes pela covid-19 registrados no Brasil.
Durante o debate, o criminalista usou termos como "genocida, politicamente falando", "criminoso" e "omisso" para se referir ao presidente. À reportagem do Estadão, Feller explicou que a menção a genocídio foi feita sob uma perspectiva político-social e que vê o inquérito como uma tentativa de silenciamento.
"Eu fui instado ao debate público, jornalístico, e consignei o estudo. Expliquei como, ao meu modo de ver, pelo menos naquele momento, era um erro juridicamente se falar em genocídio. Mas que a palavra genocídio não pode só ser vista sob uma perspectiva jurídica. Tem uma construção político-social em torno da palavra. E aí, o que eu disse, e ainda acredito, é que política, antropológica e socialmente falando, baseado neste estudo, isso é um genocídio", disse.
Com a repercussão do caso, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, e o Grupo Prerrogativas, que reúne cerca de 400 juristas e entidades representativas do Direito, saíram em defesa do advogado. Enquanto Santa Cruz classificou a iniciativa como uma tentativa de "intimidar", "criminalizar" e "tentar calar" as críticas sobre a condução da pandemia da covid-19, o coletivo criticou a atuação "obscurantista" do ministro André Mendonça, a quem chamaram de "cão de guarda do Presidente da República".