Quem melhor do que a mãe e o pai para falar de suas crias? Contar das travessuras de criança, da perna quebrada ao cair da árvore, do prato preferido no almoço, do presente especial recebido de surpresa?
Quem mais chora a perda dessas crias, se não a mãe e o pai?
Uma dor quase sempre invisível quando se trata de jovens assassinados na periferia. Corpos frios estendidos em ruas e vielas. Apenas números, julgamentos e condenações imediatas. Foi para falar o que ninguém sabe ou procurou saber, para humanizar vidas resumidas a estatísticas de genocídio, que o Coletivo Força Tururu quis ouvir o que elas, as mães, e eles, os pais, tinham a contar sobre seus filhos. Não à toa, o filme Ele era meu filho, é descrito pelo grupo como mais do que um documentário. É um direito de resposta.
Não foi fácil conseguir que eles falassem. Por medo, falta de costume, desconfiança da câmara e, sobretudo, para não mexer em feridas tão sofridas, muitos disseram não. Os que aceitaram – seis mães e um pai – transformaram os 17 minutos do documentário em lembranças, saudade, relatos cheios de vida, uma espécie de declaração de amor simples, mas contundente. No filme, ficamos sabendo que Valdecir, filho de Reginaldo, salvou a sobrinha bebê de morrer asfixiada. “Deus estava fazendo um milagre na vida dela através dele”, disse o pai, em prantos, ao lembrar o filho amoroso que, aos 11 anos, começou a se envolver com drogas.
Agarrada à foto de José Henrique, Cristina quase entrou em depressão quando o filho foi executado com 15 tiros. Estava sumido havia três dias. No coração, a mãe sentia que ele estava morto. “Quando vieram me contar, eu já sabia.” Apesar da força do seu depoimento, Cristina não quis se ver no documentário. “Não é fácil falar de alguém que a gente ama tanto e perde para as drogas.” Ela começou a “perder” José Henrique aos 15 anos, quando ele passou a voltar para casa “diferente e com os olhos vermelhos”.
Eric estava no lugar errado, na hora errada. Foi entregar uma motocicleta e terminou caído no chão, em meio a um tiroteio. Eliane, a mãe, diz que o sonho do filho era vê-la morando num lugar mais tranquilo. E se orgulha de saber que, apesar da dor imensa, a morte do jovem ajudou a salvar vidas. “Ele não bebia nem usava drogas. Decidi doar seus órgãos. Foram seis. Todos aproveitados.”
Valdecir e Cristina moram na Comunidade do Tururu, no Janga, bairro de Paulista. Eliane, em Peixinhos, Olinda. Todos na Região Metropolitana do Recife. Como tantas outras áreas pobres e desassistidas pelo Estado, esses locais carregam o estigma de serem retratados com as tintas da violência. Territórios onde, aos olhos de fora e até de dentro, a morte prematura de jovens tende a ser tratada com naturalidade. E, por consequência, as vítimas, desumanizadas.
“Quem é que fala sobre as nossas perdas? E como elas são retratadas?”, provoca Cidicleiton Luiz da Silva, arte-educador e um dos idealizadores do Coletivo Força Tururu. Ele próprio tem a resposta na ponta da língua: são as versões da polícia ou da grande mídia que costumam prevalecer. O documentário é para mudar o foco. Dar vez e voz a quem tem mais direito para falar sobre as histórias, os capítulos de vida e os sonhos interrompidos desses garotos assassinados.
“As pessoas julgam e já dão a sentença: morreu porque merecia. Bandido bom é bandido morto. A gente quis dar o direito a esse pai e a essa mãe para que eles contassem quem era o seu filho, a pessoa que chegava e dava um beijo antes de dormir, que lembrava de comprar o presente de aniversário, no Dia das Mães. Mostrar um lado que é ignorado quando esse jovem entra para as estatísticas de homicídio”, explica Cidicleiton.
VER E SE RECONHECER
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A escolha de retratar a dor de pais e mães não é aleatória. Muito menos buscar isso usando o recurso do documentário. O audiovisual tem sido uma das ferramentas usada pelo coletivo para dar visibilidade aos moradores do Tururu. É uma forma de falar de si próprio, a partir de novos olhares. Fazer com que eles se vejam e se reconheçam de forma positiva, coletiva, transformadora.
O filme Ele era o meu filho foi lançado há um mês. É a cria mais recente do grupo formado por 12 jovens e que este ano completa 10 anos de atividade. Lá atrás, em 2008, quando lançou o primeiro documentário, o coletivo já estreou ganhando um prêmio nacional. De lá para cá, foram dezenas de produções audiovisuais, todas colocando em primeiro plano os moradores da comunidade.
No propósito de “se ver e se reconhecer”, o treinamento tem sido um dos maiores frutos do coletivo. Há quatro anos, o grupo desenvolve o curso de foto-comunicação, aberto aos jovens da comunidade que queiram ir além de tirar uma foto. “Antes, é preciso fazer uma leitura de mundo, entender as dificuldades e sofrimentos sociais. Para, através da fotografia, mostrar essa realidade”, conta André Fidelis, pedagogo e parceiro de Cidicleiton no coletivo. Os que se destacam na formação ou têm pretensão de dialogar com esses desafios terminam se juntando ao grupo. Tanto que metade dos atuais integrantes veio dos cursos de foto-comunicação.
INSPIRAÇÃO
A caminhada já está fazendo história. E virando inspiração. No dia em que conversou com a reportagem, a turma do coletivo estava recebendo a visita de jovens do Cine Clube Vasco da Gama, na Zona Norte do Recife, que, a exemplo do trabalho feito no Tururu, querem dar visibilidade aos moradores da sua comunidade.
“A experiência deles é espelho para a gente. Essa identificação e interação que eles construíram aqui é o que nós buscamos lá. Viemos ouvir, aprender, saber como podemos explorar a linguagem do audiovisual nesse processo”, diz Bruno Martins. O que eles ouviram é a essência e a maior motivação do Força Tururu: o desafio é mostrar a comunidade como ela é. E não como o preconceito e o desconhecimento costumam retratá-la.