A cidade é o que se faz dela. Do afeto construído nas lembranças de infância. Dos cheiros da rua. Dos gostos de casa. Se é do sonho dos homens que uma cidade se inventa, é na relação com as pessoas que, de fato, ela passa a existir. O Recife são muitos. Olinda, tantas outras. Hoje, aniversário das cidades irmãs, o passeio não se guia pelas paisagens, mas pelas pessoas que transformam esses lugares em memória e imaginação. “A memória é um jogo entre lembrança e esquecimento”, ensina o historiador Antônio Paulo Rezende. Nessas cidades imaginárias, moradores contam sobre esse amor forjado em cantos e recantos que, para eles, fazem de Recife e Olinda o seu lugar.
Amor guiado pelas memórias de infância
Manuel Bandeira foi apresentado ao ator e produtor cultural Saturnino de Araújo, 53 anos, primeiro em forma de estátua. Em suas lembranças de infância, o monumento do poeta ficava na Rua Gervásio Pires, muito antes de chegar à Rua da União, onde hoje repousa no Espaço Pasárgada, à frente da casa onde morou o avô de Bandeira. Criança, morador do subúrbio, Saturnino ia com a família para o Centro do Recife cortar cabelo, comprar tecidos, ver as vitrines das lojas. Foi assim, levado pelas mãos cuidadosas da mãe e do irmão, que o ator descobriu o Recife que aprendeu a amar.
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Não à toa, sua grande paixão é o bairro da Boa Vista. Morador da Rua da Conceição, namorava da sua varanda o Hotel Central, erguido nos anos 20 do século passado, ali perto, na esquina da Rua Manoel Borba com Gervásio Pires. “Nas noites de lua cheia, o prédio fica ainda mais bonito. A fachada iluminada carrega uma poesia que resiste até hoje”, desmancha-se em elogios. A admiração foi além do simples namoro. Saturnino propôs um projeto para reformar a fachada do hotel que, graças à restauração, está ganhando, de volta, as cores originais.
O desejo de ver o Recife da infância preservado faz o produtor cultural caminhar pelas ruas com um olhar que foge ao convencional. “Veja aquela fachada, parece um bolo de noiva de tão bonita que é”, diz, apontando para os adornos de um sobrado da Rua da Imperatriz. Ele diz que a melhor forma de caminhar pela via é olhando para o alto. “Bom mesmo é aos domingos, quando a cidade acalma”, conta, lamentando que a violência o obrigou a turistar menos pelas ruas do Centro. “Mesmo assim, ainda me arrisco. É onde o coração da cidade pulsa mais forte.”
De todo o amor que guarda pelos cantos da cidade, um é especial: a Rua da Aurora. “É onde o Recife é mais deslumbrante.” Não só pela beleza que a paisagem carrega, mas por juntar o que, aos olhos de Saturnino, é a combinação exata da cidade. Do alto de um dos prédios da Aurora, ele enxerga o cenário perfeito: as pontes, o Rio Capibaribe e o mar. “A gente só ama o que conhece. E todo recifense deveria conhecer essa vista. O Recife nasceu desse belo encontro.”
Ruas cheias de histórias
A história de uma cidade se constrói do afeto pelas memórias que ela carrega. E, se essa cidade for desaparecendo, como ficam essas lembranças? Incomodado com um Recife que, aos poucos, vai sumindo da paisagem, o jornalista Josué Nogueira, 48 anos, virou um garimpeiro. Um descobridor de cantos, delicadezas e lugares desconhecidos. Celular na mão, ele documenta uma cidade que “#sovequemvaiape”. O desaguadouro desses preciosos achados é o site Antes que Suma. Nascido primeiro como fanpage, virou um canal de expressão do amor dos recifenses pela sua cidade.
Nascido em Corrente, no Piauí, a história de Josué com o Recife é coisa de destino. Os pais iriam para Brasília, mas terminaram vindo morar em Pernambuco. Depois, até foram para a capital federal, mas Josué ficou. A essa altura, tinha virado recifense apaixonado pela cidade. Já se vão 34 anos morando na capital pernambucana, sempre na região central. “O incômodo de ver a paisagem sumindo surgiu também dessas minhas lembranças da cidade que conheci. Uma hora passava e aquele casarão belíssimo tinha deixado de existir. Era uma fábrica, um armazém demolido para dar lugar a um arranha-céu espelhado. A memória da cidade estava se perdendo, sem que ninguém registrasse esse desaparecimento”, conta.
Mais do que fotos, o site começou a colecionar histórias. Não era mais só a casa, o casarão antigo ou o prédio de pilotis. Mas os irmãos que tinham crescido naquele jardim, o cheiro de pão da padaria, o pó de café coado na cozinha que dava para o quintal. “Eu comecei a fotografar detalhes, não só a arquitetura. Portões, pedaços de muros, azulejos raros, sacadas. Foram os leitores que me levaram a isso, a partir das lembranças que as imagens postadas no site despertavam neles.”
Registrar um Recife que dialoga com a sua história é também um movimento de resistência. “É resgatar essa cidade mais humana. Que não é dos carros, dos prédios, mas das pessoas. Do convívio com a rua, com o outro.” Nas preciosidades garimpadas pelo jornalista, o lugar onde se mora é mais do que afeto. É pertencimento.
No estuário, a ilha dentro da ilha
De barco, rasgando as águas do Capibaribe, o pescador Jozias Pedro da Silva, 54 anos, diz que o Recife dos espigões ainda tem muito o que aprender. Ele olha a cidade a partir do lugar de onde a cidade nasceu: o mangue. Observa a ilha de dentro da ilha. Nesse caso, a Ilha de Deus, comunidade localizada no bairro da Imbiribeira, na Zona Sul da capital. Jozias vive cercado de viveiros. De camarão, de sururu, de caranguejo. É de lá que tira o sustento, mas é também onde afina um discurso que pede uma cidade mais preocupada com o futuro das pessoas e do planeta.
“A Ilha de Deus representa o verdadeiro Recife. O velho Recife, que nasceu como uma comunidade de pescadores. Uma cidade que foi invadida pelos prédios, que polui os rios, que não tem respeito pelo meio ambiente, que não prioriza o saneamento básico”, aponta.
O lixo que a cidade urbana produz vai parar, em parte, no rio que garante o sustento de Jozias. O pescador sabe que essa é uma guerra difícil de vencer. Mas afirma que já viu tanta coisa mudar que não perde a esperança. A própria Ilha de Deus, morada de Jozias, ganhou ponte, urbanização, viu a violência arrefecer. “Temos muitas lutas ainda pela frente, mas o povo aqui é guerreiro. É um pedaço do Recife que as pessoas deveriam conhecer.” Do quintal de casa, deitado na rede, ele desfruta de uma paisagem que parece ter parado no tempo. “Aqui é o entardecer mais bonito da cidade. E, se for em noite de lua cheia, ainda melhor.”