O médico pernambucano Rui Ferreira, especialista em cirurgia da mão e integrante de ação humanitária que opera gratuitamente diversos pacientes pelo mundo, viveu situação especial no Oriente Médio, nos últimos dias do mês de abril. Na Palestina, onde participa de mais uma missão, operou um médico de 35 anos que havia perdido o polegar num acidente em que morreram várias pessoas. Ele conseguiu transferir com sucesso um dos dedos do pé do paciente para a sua mão. No primeiro curativo, o palestino disse ao pernambucano: “O senhor reconstruiu a minha vida”.
A amputação com transferência de dedo do pé para substituir o polegar, apesar de não ser inédita, é uma cirurgia rara, que requer habilidade do cirurgião responsável. Ainda mais no caso em questão: o paciente, antes de perder o dedo da mão, era cirurgião cardíaco. “Como operar sem o polegar? Ele virou radiologista”, conta Rui Ferreira.
Esta é a quarta vez que o médico, nascido no Sertão de Pernambuco, participa de missão humanitária na Palestina. Na região, há muito a ser feito pelo grupo de cirurgiões, por causa principalmente do grande número de mutilados de guerra. Desta vez, a ação ocorreu em Nablus,cidade importante da Cisjordânia. Junto com a médica pernambucana Gizelly Veríssimo e a anestesista Malika Omarjee Anestesista, que vive em Paris, eles atenderam 80 pacientes e realizaram 31 cirurgias.
PELO MUNDO
O itinerário de viagens internacionais do pernambucano Rui Ferreira, desde 2004, é extenso e inusitado: no início de 2016 ele esteve no Irã; em setembro visita a região da Palestina. Tem viagem marcada para o Camboja e o Líbano. Jordânia, Vietnã, Egito, México, Chile e Colômbia também entram na lista de lugares visitados. O que define os roteiros é a necessidade que cada país tem para receber as missões humanitárias das quais o médico faz parte. São mutirões de cirurgias reparadoras, especialmente voltadas para crianças e adolescentes com deformidades nos membros inferiores e superiores, principalmente as mãos.
Em parceria com a ONG francesa La Chaine de L’Espoir (A Corrente da Esperança), quase 80 missões já foram realizadas. “Na Jordânia, fronteira com Síria, os mutirões atendem crianças que estão nos campos de refugiados, mutiladas pelos conflitos”, afirma o médico. Nos anos 1980, o Irã teve atenção especial por causa dos oito anos de guerra com o Iraque - o país já recebeu 12 missões.
No Egito são comuns os casos de deformidades provocadas por partos mal conduzidos. “O parto é feito de qualquer jeito quando eles descobrem que o filho é uma menina. A mulher não tem nenhuma importância na cultura deles”, testemunhou. “E quatro dos meus cinco filhos são mulheres. Isso me chocou demais.” A Colômbia já recebeu 25 missões. “É o país com maior quantidade de deformidade congênita das mãos no mundo, por causa do veneno usado para combater plantações de coca”, revela.
O médico brasileiro que se junta a especialistas de diversos países para operar mãos de crianças mundo afora é do Sertão de Pernambuco. Nascido em Sertânia, a mais de 300 quilômetros do Recife, ainda muito novo ele vendeu roupas e trabalhou numa padaria para ajudar no sustento da família. Rui Ferreira buscou recuperar na juventude os estudos que não pôde ter nos primeiros anos de vida. E deu conta.
Aprovado no conceituado ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), tentou ser militar, mas não se acostumou aos rigores da carreira: “Foi um choque”, confessa. Optou depois por economia, ganhou bolsa para estudar na então Tchecoslováquia. Armou-se de mala e cuia. Porém, uma enchente que atingiu o Recife deixou o estudante ilhado na Madalena, bairro da Zona Norte da cidade – ele perdeu o voo.
DOUTOR
A medicina veio quase que por acaso. Passando férias em Caruaru, começou a ajudar os amigos que fariam vestibular a estudar, já que tinha certa intimidade com números. Também apaixonou-se por uma moça de família bem mais rica do que a dele. Para conseguir a permissão para o namoro, fez vestibular para ser doutor. “Todo mundo me dizia: a mãe dela só deixa namorar se for estudante de medicina”, lembra. Pois bem, Rui Ferreira virou doutor.
“Fui fazer medicina num momento crítico do Brasil. Entrei na faculdade em 1965, um ano depois do golpe militar.” Durante o curso, descobriu que tinha habilidade com as mãos. “Eu não sabia porque fui um menino do interior”, conta. “Meu sonho era um dia ter dinheiro pra comprar um cavalo e correr vaquejada. Foi o que fiz com o primeiro dinheiro que ganhei na vida. Paixão é paixão.”
Curso concluído no Recife, em 1971, ele foi ao Rio de Janeiro especializar-se em cirurgia – geral, plástica e das mãos. A formação seguiu rumo internacional com passagens pela França, China e Japão.
De volta a Pernambuco, aplicou no Recife o que havia aprendido lá fora: cirurgias reparadoras, reimplantes, transferências de dedos do pé para a mão, cirurgia do plexo braquial (conjunto de nervos da região do pescoço que movimenta braços e mãos).
O sertanejo fala quatro línguas, além do português: “Aprendi pela necessidade de estudar”. Hoje, aos 71 anos, divide a vida entre a sela do cavalo, ainda correndo vaquejada, e as cirurgias reparadoras em suas corridas pelos mundo.