solidariedade barrada

Em dia de parada, comunidade LGBTI cobra direito de poder doar sangue

Grupos defendem que hemocentros coletem e testem em vez de barrar doação

Ana Tereza Moraes
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Ana Tereza Moraes
Publicado em 16/09/2018 às 9:47
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Grupos defendem que hemocentros coletem e testem em vez de barrar doação - FOTO: Foto: Reprodução
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A 17ª edição da Parada da Diversidade no Recife, marcada para este domingo (16), na Avenida Boa Viagem, espera receber cerca de 500 mil pessoas em uma caminhada marcada por muita celebração e luta pelos direitos da comunidade LGBTI. Entre as pautas, uma pouco conhecida e repleta de controvérsias: o direito de doar sangue. Para homens que fazem sexo com homens (HSH) e/ou as parceiras sexuais destes, esse ato de solidariedade só pode ser realizado sob a condição de terem passado o último ano sem ter tido relações sexuais.

O funcionário público Acherle Varela, de 35 anos, tem o tipo sanguíneo O positivo, considerado doador universal e um dos mais utilizados para transfusões. No site da Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (Hemope), por exemplo, é possível verificar que o armazenamento do O+ encontra-se em nível crítico. Apesar disso, Acherle, que tem disposição, saúde, e hábitos ideais para doar, dificilmente poderá contribuir com o estoque dos hemocentros justamente devido a sua orientação sexual.

Antes de saber do impedimento temporário para o grupo HSH, ele conta que passou por um episódio “terrivelmente constrangedor” ao ter seu sangue negado pelo Hemope. “Eu não tentei fingir ser algo que não sou. Eu nem imaginava que isso [ser homossexual] poderia impossibilitar minha doação. Essas restrições estão tolhendo e infringindo a lei maior no que tange o meu direito a dignidade. Não deveria existir ‘grupo de risco’ e sim ‘comportamento de risco’, que qualquer ser humano pode ter independente da orientação sexual. O sangue deveria ser coletado e testado, e não barrado”, defende.

A expressão “comportamento de risco”, mencionada pelo funcionário público, é utilizada para caracterizar aqueles que têm maior probabilidade de se contaminarem com o HIV. Entram nesse conceito, por exemplo, pessoas que fazem sexo sem camisinha ou com múltiplos parceiros, portadores de DST e pessoas que já compartilharam seringas ou agulhas.

O estudante Ramon Siqueira, de 20 anos, também ficou marcado pelo desconforto na sua ida à um hemocentro: "Foi a primeira vez que me senti estranho por ser quem sou. Quando eu falei que era gay, ela [funcionária] simplesmente falou que eu não podia doar.  Ainda tive que ouvir ela sugerir que eu terminasse meu namoro quando disse que estava numa relação séria há dois anos. Senti um preconceito muito grande”, relembra.

“Acho que falta falarem mais sobre isso. Fui surpreendido quando cheguei pra doar, não sabia que não poderia mesmo sem ter doença ou hábitos errados. O sangue e os hábitos é que deveriam ser analisados, e não a sexualidade da pessoa. Conheço muito hétero, por exemplo, que tem relações com várias meninas diferentes e em alguns casos nem usa preservativo, pois confia no anticoncepcional que a parceira toma. Assim como conheço muitos gays que se previnem, justamente para evitar doenças, e mantêm relações com um só parceiro. É relativo”, argumenta o atendente Lindomar Lee, de 22 anos.

Comportamento de risco é usado como justificativa

A restrição que impediu Ramon e Archele de serem doadores é determinada por portarias da Anvisa e pelo Ministério da Saúde, baseadas em uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). A justificativa dada é que esses homens fazem parte do que definem como “grupo de risco” – embora o Portal Saúde, do Governo Federal, recomende o termo “comportamento de risco” –  para a transmissão de vírus como o HIV e outras DSTs (doenças sexualmente transmissíveis).

O Hemope informou que o uso de preservativos ou outros métodos de barreira não são totalmente sem riscos, e que há um período de tempo entre a infecção e a identificação nos testes, chamado de Janela Imunológica. “Nesse período, uma contaminação recente pode não ser detectada pelos testes laboratoriais existentes hoje. A entrevista é o único fator de proteção nesses casos para que o receptor não corra risco de contaminação”, disse Lésbia Sitcovsky, Gerente do Hemocentro Recife. “Como critério para a seleção dos doadores, o profissional de saúde capacitado avaliará os antecedentes e o estado atual do candidato a doador para determinar se a coleta pode ser realizada sem causar prejuízo a ninguém”, defendeu.

Apesar de ser tido como seguro, o atendente Lindomar Lee acredita que o método está suscetível à  mentiras: “Qualquer um pode mentir, sendo gay, hétero, tans, bi”. Ramon Siqueira, por sua vez, já presenciou um caso como esse. “Eu nunca vou mentir pra ninguém sobre minha sexualidade, eu não sou obrigado a isso e não me envergonho de quem sou. Mas antes de mim um outro rapaz, também gay, conseguiu doar e ajudar a avó de uma amiga nossa simplesmente porque falou que era hétero”, relembra.

Em nota, o hemocentro de Pernambuco se isentou da responsabilidade pelas decisões: “Não nos cabe, enquanto hemocentro regulados por uma instância maior, questionar definições baseados nesses grupos que se norteiam em relatórios da Vigilância Sanitária, Anvisa e estudos internacionais a respeito do assunto”.

Contestações

Apesar dos argumentos das entidades, a inaptidão temporária entra em contradição com outra portaria do próprio Ministério da Saúde, a 1.353, a qual estabelece que “a orientação sexual (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) não ser usada como critério para seleção de doadores de sangue, por não constituir risco em si própria”.  Além disso, considerando que, segundo o IBGE, há aproximadamente 10,5 milhões de homens homossexuais ou bissexuais no Brasil, estima-se que o país esteja desperdiçando cerca de 18,9 milhões de litros de sangue de potenciais doadores por ano com a adoção dessas medidas, um desfalque considerável nos estoques.

Uma campanha lançada em 2016 pela agência de publicidade Africa, em parceria com a ONG internacional All Out, buscou exemplificar isso através de uma fila virtual fictícia, formada por meio de uma enquete online respondida por homossexuais. Como resultado, a campanha batizada Wasted Blood obteve uma lista de 215.301 homens dispostos a doar.

Desde 2017, o debate está na mão do Supremo Tribunal Federal (STF), tendo o ministro Edson Fachin como relator da ação que questiona a constitucionalidade das normas de restrição. Advogados do Partido Socialista Brasileiro (PSB), partido que ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543 em 2016, afirmam no documento que as regras escancaram "o absurdo tratamento discriminatório por parte do Poder Público em função da orientação sexual, o que ofende a dignidade dos envolvidos e retira-lhes a possibilidade de exercer a solidariedade humana com a doação sanguínea".

Na ação, é destacado ainda que, no caso de homens heterossexuais, ter feito sexo com uma única parceira nos últimos 12 meses já basta para torná-los aptos à doação. Já em relação a homens gays e bissexuais as exigências vão muito além e pedem absoluta ausência de relações sexuais pelo período mínimo de um ano, pouco importando que tenham ocorrido com parceiro fixo e com uso de preservativo, indicado como o método com maior eficácia para evitar contágio de AIDS e demais DSTs. O julgamento da ação, porém, foi suspenso no dia 26 de outubro do ano passado, e ainda não há data para entrar novamente na pauta do STF.

Em fevereiro de 2018, uma representante da Organização Mundial da Saúde reconheceu que a recomendação referente à doação de sangue por homens gays foi feita em um período no qual as pesquisas sobre o risco nas transfusões ainda estavam evoluindo e que, de lá pra cá, houve um avanço considerável nos estudos. A declaração foi dada pela diretora-geral adjunta do departamento de Cobertura Sanitária Universal da OMS, Naoko Yamamoto, em resposta à Aliança Nacional LGBTI. Através de uma carta, Naoko também admite a possibilidade de uma reconsideração.

“A OMS iniciará uma revisão nas atuais diretrizes de seleção de doadores em virtude dados mais recentes sobre os riscos não apenas em HSH (Homens que fazem Sexo com outros Homens), mas também em outros indivíduos anteriormente considerados parte de grupos de risco significativo por causa do seu comportamento”, disse a diretora-geral adjunta.

Em nota enviada ao Jornal do Commercio, o Ministério da Saúde justifica que a inaptidão é temporária e adota o princípio da precaução, estando fundamentada em dados epidemiológicos, sem relação com preconceito ou orientação sexual do candidato. Por outro lado, o órgão público não descartou futuras mudanças nas diretrizes e afirmou que “este tema está em revisão em todo o mundo e o Ministério acompanha regularmente todas as evidências científicas nacionais e internacionais sobre a questão e novos achados para uma eventual modificação da conduta baseada em evidências seguras”.

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