Temporada

A volta de Cinderela, a Bicha Borralheira

Henrique Celibi remonta o texto original que deu origem ao maior fenômeno do teatro recente pernambucano

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 12/04/2016 às 6:43
Alexandre Gondim / JC Imagem
Henrique Celibi remonta o texto original que deu origem ao maior fenômeno do teatro recente pernambucano - FOTO: Alexandre Gondim / JC Imagem
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Era um Recife onde uma alfaia de maracatu jamais encontraria uma guitarra de rock’n’roll, manguebeat não era sequer verbete e o povo da noite precisava saber se espremer bem. Na antiga boate Misty da Rua da Ninfas, tanto gays podiam se beijar sem o patrulhamento daqueles anos, como a fauna noturna suava pra poder ouvir clássicos do The Cure, Joy Division e The Smiths quando isso ainda sinalizava algum perigo. Naquele ambiente avesso ao sol, Henrique Celibi, sem que desconfiasse, dava origem a um clássico do teatro urderground pernambucano - hoje, devidamente celebrado pelo mainstream.

A partir de amanhã, Celibi dá início a uma pequena temporada em que remonta A Bicha Borralheira, a história que sua mãe não contou. “Naquele tempo, as boates gays faziam os números clássicos de dublagens de cantoras. E a gente preenchia os intervalos com esquetes”, lembra Celibi, dono, ele próprio, de um cover impagável da baiana Maria Bethânia. Texto que deu origem ao fenômeno Cinderela, de Jason Wallace (o personagem televisivo e adotado, hoje, pela família pernambucana que garante seu primeiro lugar de audiência na sua faixa de horário, pela TV Jornal/SBT), a Bicha Borralheira fica em cartaz, nesta e na próxima semana, no Hermilo Borba Filho.

“Além de ser uma montagem comemorativa pelos 35 anos da primeira montagem, acho que o momento é muito oportuno pela grande discussão em torno das questões de gênero de hoje, que são muito intensas”, diz Celibi.
Nesta montagem, ele, além de dirigir e produzir, atua como a fada-macumba, uma fada às avessas que, se o roteiro der certo, ajudará Cinderela a descolar um cartão do sistema VEM para pegar um transporte e ir ao baile encontrar o amor - , provavelmente em algum canto molhado de suor na Rua da Concórdia durante o Galo da Madrugada. “Há uma brincadeira no final em que a Fada-macumba aparece para fazer com que a Bicha Borralheira consiga encontrar o Frango da Madrugada”, ele diz.

A Bicha Borralheira é, portanto, a versão original que deu origem ao fenômeno Cinderela, em cartaz ininterrupto por quase uma década como a peça mais vista nos anos 1990 que redefiniram o que é ser recifense. Em 1992, Jason Wallace e a Trupe do Barulho, nome de sua companhia, receberam o convite para cobrir o Carnaval para a TV Jornal e Jason, que já havia também batido muito o cartão em inferninhos da noite do Recife, deu a definitiva encarnação midiática à Cinderela. O texto original se vale da crônica potente para usar o conto dos irmãos Grimm como pretexto para passear pelas periferias, financeiras e sexuais, do Recife.


Esta montagem com Celibi é, portanto, a oportunidade de (re) ver o ponto um do fenômeno para o qual, depois, parte da intelectualidade teve que deixar de torcer o nariz. Numa das filas para o teatro, o dramaturgo Antônio Cadengue, conhecido pela sua intimidade com os clássicos da dramaturgia ocidental, disse que Jason Wallace, com Cinderela, se tornava uma espécie de Sarah Bernard do Recife - tamanha a popularidade. Publicado pelo professor e dramaturgo Luis Reis, o livro Cinderela a a história de um sucesso teatral dos anos 1990, traria outra boa dose de prestígio ao grupo. Além do caráter socialmente corrosivo do humor no texto, o professor ressaltava que, naquela encruzilhada dos anos 1900, Cinderela fazia o público aceitar as pazes com o teatro num Recife onde as salas viviam às moscas.


Quando Wallace assumiu Cinderela, Henrique Celibi estava no Rio de Janeiro, onde trabalhou como cenógrafo de mais escolas de samba que a Sapucaí poderia suportar. Tinha acabado de viver os últimos suspiros do Vinvencial Diversiones.


Menino da Ilha do Maruim,  Celibi tinha apenas 14 anos quando aquela entidade que desafiava a ditadura, com conceitos borrados de gênero e muito desbunde, se materializou na forma de uma trupe de teatro no Complexo de Salgadinho, em Olinda. “Quando a polícia chegava para dar batidas, eu fugia pelo fundo falso de um armário encostado na parede”, conta o antigo mascote do coletivo teatral que sintetiza uma era.


Mais de 40 anos depois, Henrique, por sinal, ressuscitou o grupo. Com o espetáculo Cabaré Diversiones, em cartaz ano passado, no Apolo, trouxe de volta veteranos como Sharlene Esse e a promessa de nova vida ao Vivencial com a ocupação militante de um casarão abandonado no Recife Antigo. “Mas a dona pediu o imóvel de volta e como nossa ocupação era pacífica, devolvemos. Em breve, teremos outra sede”, ele espera. É com o elenco do novo Vivencial, inclusive com o impagável Filipe Endrio no papel da Gata Borralheira, que Celibi faz sua Cinderela reloaded.

 

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