Reinventar-se em meio ao caos, assim como dar sentido às ruínas do que um dia lhe foi familiar são desafios nos âmbitos internos e coletivos. Diante do momento conturbado pelo qual atravessam o Brasil e o mundo, a perspectiva de futuro se torna uma incógnita cada vez mais obscura e a perspectiva de mudanças positivas, mais distantes. Com o tema “distopias e realidades”, o Trema! Festival chega à quinta edição se propondo a fomentar a discussão a respeito do zeitgeist. A programação tem início hoje com o espetáculo Noite, do grupo português Circolando, no Teatro Barreto Júnior, e segue até o dia 14.
Fundado como um festival voltado para a criação de coletivos, o Trema ampliou suas possibilidades de diálogo ano passado, quando passou a receber também trabalhos de artistas solo cujas pesquisas tinham caráter de continuidade. Neste ano, essa proposta é solidificada, investindo também em maior espaço para a produção local, que compõe 45% da grade. Ao todo, serão 24 sessões de 15 espetáculos, sendo um internacional, oito nacionais e seis pernambucanos.
“Acho que, de alguma maneira, é quase que uma continuidade da edição passada, quando já apontávamos para uma necessidade de reconstrução da sociedade, servindo quase como uma antena que já imaginava o que vinha para o país, uma vez que o festival aconteceu pré-golpe. A edição deste ano serve como uma constatação de que algo deu errado. Tentamos apontar para esta sociedade que está extremamente fragilizada e encaminhando-se para uma possível barbárie”, explica Pedro Vilela, idealizador e diretor artístico do evento.
Ele ressalta ainda que o momento é delicado para os festivais ao redor do país, pontuando que as políticas públicas, ou ainda a falta delas, não têm fortalecido ações antes em andamento.
“Tenho visto cada vez mais a dificuldade de realização de festival em todo o país, o que é uma pena, pois os festivais têm esse caráter formativo, de trazer um público que não está acostumado a acompanhar temporadas. É um chamariz para aproximar sociedade da criação artística. No fundo, temos um Ministério da Cultura extremamente inoperante. Diversos editais e ações não vêm sendo cumpridos ou postos em pratica. As artes vêm sendo esquecidas no âmbito federal e municipal”, reforça.
Para as próximas edições, Pedro Vilela afirma que o objetivo é intensificar a presença de artistas internacionais, a fim de promover um intercâmbio de olhares e experiências com a cena local. “Estamos celebrando o amadurecimento do festival, do crescimento do interesse do público em torno da nossa proposta. De poder realizar apesar da crise”, complementa.
PORTUGAL
Noite, espetáculo do grupo Circolando (POR), que abre a programação do Trema, tem em sua essência os principais eixos abordados pelo festival nesta edição. Através de metáforas e da transdisciplinaridade, a obra tem seu cerne na poesia de Al Berto, multiartista português, e dilata as possibilidades das artes performativas, levando para o palco um trabalho que busca instigar o intelecto, mas também os sentidos do espectador, através da investigação dos “buracos negros” da existência.
“A obra do Al Berto influencia há vários anos as nossas criações, ao ponto de decidirmos avançar para uma criação que partisse da obra dele. As ideias de arrabalde, lugares para além da cidade, os solitários da noite, os cachorros vadios, o buraco negro, as estrelas e o mar, foram os nossos pontos de partida. O desconhecido, a noite como lugar de criação veloz, de liberdade. Depois, decidimos trabalhar a partir de improvisações longas, todas filmadas, usando alguns temas/poemas como matérias-base e objetos que tínhamos no espaço. Deixamos que o tempo e o cansaço nos levassem a novos lugares”, explica André Braga, diretor e intérprete.
No palco, além de André, estão Paulo Mota e Ricardo Machado. O cenário é composto por uma centena de pneus, por onde os artistas tensionam os movimentos ao dançarem de forma intensa ao som proposto pelo DJ André Pires, que tem forte participação em cena.
“A transdisciplinariedade permite uma grande liberdade de criação, o encontro entre diferentes pessoas e linguagens. Sempre tivemos uma grande vontade de inovar, de nos colocar em risco. O medo da acomodação está muito presente, queremos manter-nos sempre jovens e descobrir novos caminhos. Já temos 18 anos de coletivo e gosto de encará-lo como uma adolescência. Aos 10 anos [DE GRUPO] fizemos uma clara derivada estética. Até aí as nossas obras refletiam um mundo mais belo e apaixonado, estávamos um pouco fartos. Decidimos parar e trabalhar durante um ano num solo sobre a morte como lugar de renascimento. A partir desse momento, a dança emotiva passou a ocupar um lugar mais certo nas nossas obras. Passamos a querer quase tudo do amor, da morte, da filosofia, da política, da violência, da ternura”, enfatiza André.
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Sobre a cena artística em Portugal, país que foi muito afetado pela crise mundial que eclodiu em 2008, Braga afirma que há um em andamento um movimento de transformação e pulsação artística.
“Acredito que [o incentivo às artes] esteja melhor que aqui, embora a crise se tenha traduzido num corte de mais de 50% no apoio que recebemos do Estado. Na nossa cidade, o Porto, entramos em um novo ciclo político onde se volta a apostar muito na Cultura, depois de 10 anos de desinvestimento. Também vivo um conflito interno quando penso se a arte deve fazer parte do sistema. Muitas vezes é nos períodos de crise que a criatividade e a arte mais inova”, completa.