Autor do referencial A Invenção do Nordeste,o historiador paraibano Durval Muniz de Albuquerque lembra que, para ser uma demarcação político-geográfica, o Nordeste foi antes discurso. Amparados na estiagem, na transferência de poder para o Sudeste, no patriarcalismo e em outros elementos potencializados como arquétipos ou clichês, uma série de narrativas “construíram” a região. Esse discurso do Nordeste atemporal, um tanto deslocado do fluxo da história, segue como fonte fértil para a produção de novas narrativas: vencedor do Marc Ferrez, prêmio de fotografia da Funarte, o fotógrafo maranhense Márcio Vasconcelos lança hoje, no Recife, “Na trilha do Cangaço - o Sertão que Lampião Pisou”, um ensaio fotográfico de cem páginas sobre os lugares e pessoas que ajudam a fixar o cangaceiro numa pedra de assento do imaginário nordestino.
“Fui inspirado pelas imagens que tenho na memória dos fotógrafos da época, que se aproximaram do Lampião, o filme e o material deixado pelo Benjamin Abrahão, e pude ver que de lá pra cá muita coisa ainda permanece como se o tempo tivesse parado nas mesmas agruras e dificuldades de anos atrás”, conta Vasconcelos, um fotógrafo que tem se dedicado a documentar tradições e narrativas de povos brasileiros. É autor, por exemplo, de “Nagon Abioton – Um Registro Fotográfico e Histórico sobre a Casa de Nagô”.
Caminhando entre o mais documental e o ensaístico, o fotógrafo refez vários dos caminhos feitos por Lampião, “segundo personagem mais biografado da América Latina, depois do Che Guevara -, Maria Bonita, Corisco, Dadá e seus bandos, através da elaboração de uma trilha que ligará locais que são simbólicos na história do cangaço pelos sertões nordestinos”. Além do corpo físico da região, a história é também contada por meio de retratos de desecendesnte e de outros personagens que viveram os anos de Lampião.
No percurso, o fotógrafo ignorou parabólicas e digitais, as motos em lugar dos jegues, os novos aglomerados como oásis caoticamente urbanos no sertão, para focar o olhar nos rincões onde o tempo parece recusar-se a passar. “Algumas situações de isolamento e de padrões sociais permanecem muito inalteradas”, ele diz.
Silenciosas como esse sertão, de cores saturadas como a realçar um certo hiper-realismo fantástico de uma região plena de seres e subjetividades próprias, como se atemporais, as imagens de Vasconcelos vão do chão renascido da caatinga depois das chuvas, aos vaqueiros que fazem do couro o esteio de uma civilização e à fé tão talhada como os sulcos nos rostos desses homens.
Retratos de descendentes e sobreviventes dos anos do próprio Virgulino Ferreira confirmam a descendência entre novos e velhos homens que fazem deste sertão um presente pretérito contínuo. A intensidade estética não compromete, apenas reforça, o caráter antropológico do projeto fotográfico de Márcio Vasconcelos.
Um texto do historiador Frederico Pernambucano de Mello conta o contexto social em que a cultura do cangaço talhou aquela região com sua estética para além dos anos em que de fato existiu. “Como entender as notáveis afeições estéticas desse traje, inconfundível em sua imponência e escancarado no revelar a identidade de quem o porta, senão como um indicativo de orgulho quanto a vida adotada”, diz ele, num trecho, sobre a confluência da estética com a ética do sertão cangaceiro. Aprovado pela Lei Rouanet com apoio do grupo Ser Educacional, o livro Na Trilha do Cangaço - O Sertão que Lampião Pisou é lançado hoje, a partir das 19h, na Livraria Cultura do Shopping Rio Mar.