Certo dia, Francisco Brennand aproximou-se do mesmo forno em que queima sua famosa cerâmica e lá jogou cerca de dez volumes. Eram cadernos escritos com sua letra cursiva, uma caligrafia de vogais muito arredondadas e consoantes que se projetam agudamente, para cima, como um atleta na prova do salto com vara. Já na boca da fornalha, sem nem chegar ao núcleo, a temperatura alcança os 300 graus centígrados. O suficiente para o calhamaço virar, quase que instantaneamente, cinza e pó. “Não me arrependo. Eram todos muito lamurientos. Não eram literatura, apenas desabafo e choramingos”, sentencia Francisco Brennand quando questionado sobre o porquê da incineração.
Dez anos de sua vida estavam ali contidos, mais precisamente, a década de 1963 a 1973, sob a forma de anotações, uma prática que ele manteve durante 50 anos. Excetuando este sacrifício às chamas, o conteúdo dos diários que FB escreveu, desde a sua partida para uma temporada na Europa, em 1949, até o ano anterior àquele em que fincou no coração do Recife a sua coluna de cristal, 1999, ficará agora à disposição do leitor em forma de quatro livros contidos numa caixa. O lançamento dessa publicação luxuosa e artisticamente impecável será no próximo sábado (3/12), às 16h, na Propriedade Santos Cosme e Damião, na Várzea, que é como Brennand se refere à área onde está instalada a Oficina Cerâmica que leva seu nome.
O artista – detentor do Prêmio Interamericano de Cultura Gabriela Mistral, conferido pela Organização dos Estados Americanos em 1993 – recebe a publicação dos seus diários em livro como uma homenagem que a sobrinha-neta, Marianna Brennand Fortes, quis lhe prestar em seus 89 anos de vida.
Em 2002, recém-formada em Cinema na Califórnia, Marianna desembarcou no Recife com o projeto de realizar um documentário sobre o tio-avô. “Lembro que lhe escrevi uma carta, foi uma abordagem formal”, conta Marianna. Os diários foram importantes fontes de pesquisa para o longa-metragem Francisco Brennand, que teve fotografia de Walter Carvalho e foi vencedor em duas categorias na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2012, levou o Itamaraty de Melhor Documentário e o prêmio de Melhor Filme da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). “Publicar seus escritos em vida foi uma promessa que lhe fiz. Mas meu compromisso com a obra dele nunca vai acabar”, garante Marianna.
Para ser mantida, a promessa/projeto contou com o patrocínio do Itaú Cultural e do Grupo Cornélio Brennand através da Lei Federal de Incentivo a Cultura e apoio cultural da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco.
CONTEÚDO
Diário de Francisco Brennand – O Nome do Livro foi a forma escolhida para batizar os três primeiros volumes, que seguem cronologicamente as décadas de 1949 a 1979, 1980 a 1989 e 1990 a 1999. O quarto da série difere de seus irmãos em projeto gráfico e narrativa. Enquanto os primeiros seguem rigorosamente a estrutura de um diário, com entradas de datas e reflexões ao sabor de fatores internos e externos a exercerem pressão sobre o autor, este último, que recebeu o subtítulo de O Nome do Outro, é, nas palavras de quem o escreveu, “uma narrativa folhetinesca, como se o narrador tivesse pressa em conduzir um depoimento que não lhe seria favorável”.
Para se desincumbir da tarefa auto-imposta, FB lança mão de um alter ego, que deixa de atender pelo nome de Nonato (o não-nascido) para assumir a identidade de Renato (o renascido). Personagens que vão pontuar a trama, como Viriata e Dr. Intruso, começam a aparecer já no volume 3, mas tornam-se autônomos apenas no 4, auxiliando na composição de uma história cheia de alegorias, à moda do artista plástico e cineasta Peter Greenaway.
Não há necessidade de um mergulho disciplinado nas memórias de Francisco Brennand. O acesso a universo tão sedutor pode ser feito por muitas portas. Seu efeito hipnotizante é aumentado pela erudição e carga às vezes emotiva, ora calculadamente distanciada com que FB nos apresenta não apenas lugares, mas, sobretudo a alma de um tempo. As chaves para adentrá-lo podem ser aquelas que se encaixam na curiosidade de quem vai iniciar a jornada. Particularmente, no entanto, começar a desvendar Francisco por aqueles anos iniciais, em que ele se descobre artista, tem um sabor especial. É como colher algo que pensávamos perdido para sempre ou, pior, nunca tivesse existido.
A navegação é tão mais facilitada porque, aparentemente, o memorialista parecia ter consciência da grandeza de sua experiência, mesmo nos primórdios. De modo que sua prosa se mantém sempre fluida, elegante, recheada de boas frases, agudez e poder de síntese, numa atitude quase autoconsciente de que chegaria um tempo no qual os escritos não mais pertenceriam às suas gavetas, mas às prateleiras das livrarias e, de lá, ao mundo.
É um privilégio poder vê-lo acionar as alavancas simbólicas que o levariam a ser a força da natureza que é. Primeiro, no Rio de Janeiro, porto onde esperou a chegada do navio R.M.S. Alcântara, que o levaria a Paris para um ano de imersão nas artes plásticas. Como companhia a bordo da embarcação, um exemplar de Guerra e Paz, de Leon Tolstoi, e sua amada Deborah, esposa por 20 anos e amiga da vida inteira. Nos volumes 1, 2 e 3 dos seus diários, uma única dedicatória: “A Deborah”; no de número 4: “Mais uma vez, a Deborah. A frase do seu tio Eduardo ressoando-lhe nos ouvidos: “A vida não é literatura. É algo bem mais violento e irreparável”, profetizou.