Foi um capricho do acaso que Picasso tenha exposto no Recife de 1920. Amigo de Cícero Dias, o artista Francisco Brennand ouviu do próprio como se deu a aproximação entre o pernambucano e o pintor-síntese do século 20. “Cícero, por razões outras, não apenas porque era pintor, ficou amigo de Paul Élouard quando estudava em Paris. Durante a guerra, era muito difícil encontrar habitações na cidade. Houve uma lei proibindo que se ocupasse mais de um imóvel. Picasso tinha vários, pra guardar as muitas telas. Ele precisou se desfazer de um, e Élouard disse que Cícero era de confiança.” Assim, inquilino e testa de ferro de Picasso, Cícero Dias acabaria por se tornar o elo entre a arte pernambucana e o modernismo europeu.
O que não quer dizer que tenha havido adesão imediata. “Cícero conhecia bem aquele pessoal e trouxe as obras, fez exposições. Embora essas exposições não tenham trazido um discurso completo. Foi mais noticiado do que discutido. O segundo impulso (da arte moderna em Pernambuco), veio com o pessoal que reformou a Escola de Belas Artes do Recife. E há um terceiro movimento da Sociedade de Arte Moderna que transborda com Abelardo da Hora e com o movimento de cultura popular com ações de caráter regional político”, comenta o pintor João Câmara. “A semana de 22 tem uma característica de atualização da arte brasileira em oposição ao parnasianismo. Diferentemente, a cultura modernista pernambucana não rompia apenas com o parnasianismo, mas tinha inclinação para o regionalismo, com a linha de Gilberto Freyre e outros que professavam uma identidade regional, um regionalismo que se revestia de linguagem modernista.”
ZONA TÓRRIDA E O MANIFESTO REGIONALISTA
Em Pernambuco, o modernismo viraria agenda com o projeto de demarcação identitária do autor de Casa Grande & Senzala. Freyre afirmou, sem camuflar a sociologia militante, que a insolação solar, que a orgia da luminosidade tropical, que o sol afirmativo “a rendar o chão com a sombra de mangueiras e jambeiros” deveria precipitar, na pintura, um padrão saturado, de cromatismo generoso, cores fortes em detrimento dos tons menos luminosos de uma certa pintura europeia. Nosso modernismo seria bronzeado.
Na exposição Zona Tórrida – Certa Pintura do Nordeste (2012), os curadores Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz procuram discutir a tese, com telas e desenhos de importância já histórica. Apesar de afirmarem que o “olho esquiva-se de Newton e de Goethe porque a luz que penetra (na pintura) não se mede com fotômetro”, contrariando um behaviorismo estético, e que “o Brasil é irredutível a um sistema de cor”, os curadores dizem que, nesta Zona Tórrida, “a sensibilidade cromática do regionalismo nordestino seria eminentemente mais tórrida que o regionalismo paulista da cor”.
No Manifesto Regionalista de 1926, Freyre, como a maior voz intelectual da região, não apenas propunha o reconhecimento das tradições regionais, mas a eleição de elementos capazes de configurar uma identidade – e identidade, sabemos, é ficção socialmente celebrada. Para Freyre, “o mortífero derrame de luz equatorial geraria, diferentemente da nitidez caipira percebida por Tarsila do Amaral na região de Minas Gerais e São Paulo, um escândalo de sangue fresco (amarelos e roxos espessos, oleosos, gordos, às vezes dando vida a formas que são meio-termos grotescos entre o vegetal e o humano).”
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“Qualquer região é, em termos do que a distingue simbolicamente das demais, uma invenção de quem mora ali, de quem tem poder de fazer valer a sua visão (estética e ética) do que são esses lugares. Nesse sentido, o Modernismo Pernambucano, como entendido hoje, é uma construção narrativa informada, hegemonicamente, pelo pensamento regionalista que, tendo Freyre à frente, se contrapunha ao ideário modernista gestado em São Paulo na década de 1920”, resume Moacir dos Anjos.
Para Freyre, a “virgindade” da pintura nacional era outra: “Vem dessa tirania da distância sobre nossos olhos e sobre a nossa imaginação o não termos ainda produzido um pintor verdadeiramente nosso: a paisagem e a vida do Nordeste brasileiro se acham apenas arranhadas na crosta. Nos seus valores íntimos continuam virgens”. O texto, publicado num jornal recifense de 1924, anteciparia o Manifesto Regionalista.
No Rio de Janeiro, lembra Clarissa Diniz, “Cícero Dias desponta (...) nos anos 1920 com incontrastável frescor. Suas aquarelas eram o sonho erótico de um menino de engenho fascinado pela metrópole, lugar de realização do desejo”. Mais: “Cícero veio (sic) ao mundo para desandar a cor caipira, a paleta que Mário quis ver com Tarsila, como alavanca para seu projeto bandeirante de predomínio simbólico de São Paulo na formação do Brasil modernista” – embora tenha, depois, aderido ao geométrico e à perda da solaridade nordestina.
Em 1931, Cícero exporia o impactante painel Eu vi o mundo... ele começava no Recife (1926-29) no Salão Revolucionário do Museu Nacional de Belas Artes (RJ). Tanto quanto a moderna sexualidade explícita que levou o painel a ser censurado, ali estavam também o Nordeste e sua história social. “Na grande pintura de Dias, a luminosidade tropical se transforma em clareza do enunciado e, assim, o pretexto inicial da obra contar a história de Joaquim Nabuco invevitavelmente metamorfoseou-se por uma enxurrada de imagens do cotidiano”, como se “Cícero soubesse que passava pelo seu corpo toda uma história do Nordeste”. Seguiria-se uma adesão, às vezes rompida e mesmo rechaçada, ao manifesto pictórico de Freyre. “Estaria eu participando de sua ideias?”, questionou-se Cícero. “O notável sociólogo jamais poderia encontrar uma pintura onde as afinidades literárias e sociológicas estivessem tão perto das artes plásticas”, respondeu-se.
Os anos trariam uma série de pintores responsáveis por reunir elementos de uma dizibilidade e uma visibilidade suficientes para forjar o discurso identitário da região. Um deles, o Vicente do Rêgo Monteiro, de volta de Paris, que, na Escola de Belas Artes do Recife que ia substituindo o academicismo pela nova arte moderna, como professor, ia guiando os pincéis de jovens alunos como Tereza Costa Rêgo, Reynaldo Fonseca e Francisco Brennand.
“Vicente investia na criação de um repertório imagético que, nas suas aproximações com aqueles imaginários de culturas primitivas, abria a guarda para que, mais tarde, fossem absorvidos – no âmbito da pintura erudita que iria se processar em Pernambuco – elementos formais vindos do rico repertório visual da cultura popular”, comentou o historiador de arte, professor da USP e curador Tadeu Chiarelli. Na Escola de Belas Artes do Recife, essa luz tropical, ainda que ideológica, catalisava a formação de artistas forjados na liberdade do academicismo. “Quando a gente saía da regra três, eles aplaudiam... fiz a figura de um menino desproporcional, as pernas muito maiores. Na academia, antes, não podia ser assim”, lembra Tereza Costa Rêgo.
Francisco Brennand, José Claudio, Marianne Peretti, Reynaldo Fonseca, Raul Córdula, João Câmara, Montez Magno, Tereza. Os mais novos, com pouco mais de 70 anos. Os mais velhos, com pouco mais de 90. Atores-testemunhas da arte moderna brasileira construída, uns mais, outros menos, com luz e sotaque pernambucanos. A partir de amanhã, visitamos os ateliês da última grande geração do Pernambuco Modernista – uma escola com muito ainda a escrever – e a reescrever. (B.A.)