DIVISOR DE ÁGUAS

Como Duchamp mudou a história da arte após exibir um urinol como obra

'A Fonte' pavimentou o caminho para a arte conceitual ao questionar o que era a arte. 100 anos depois, obra tornou-se cânone modernista

GG ALBUQUERQUE
Cadastrado por
GG ALBUQUERQUE
Publicado em 15/04/2017 às 14:13
Foto: Alfred Stieglitz
FOTO: Foto: Alfred Stieglitz
Leitura:

Sem júris, sem prêmios. Essa era a filosofia da Associação de Artistas Independentes de Nova York, criada em 1916 sob os moldes da Société des Artistes Indépendants de Paris, para promover exposições anuais da nova vanguarda artística de então. Qualquer um poderia participar. Bastava preencher uma ficha de inscrição e pagar a taxa de US$ 6 que o seu trabalho seria exposto.

Vivendo em Nova York desde 1915, o pintor, escultor e poeta Marcel Duchamp (1887 – 1968) era um dos membros da comissão de organizadores do Salão dos Independentes, que aconteceria em abril de 1917. O francês já estava bem estabelecido em sua nova pátria. Antes mesmo da sua chegada, o artista havia causado controvérsia e burburinho com a tela cubista Nu Descendo as Escadas, exposta em 1913 no Armory Show e criticada e parodiada por críticos e cartunistas – até o presidente Theodore Roosevelt malhou a obra em ensaio publicado na revista The Literary Digest. Mas, inquieto, Duchamp não parou com as provocações e resolveu fazer um teste com os próprios colegas da Associação. Uma piada prática que mudou para sempre a história da arte.

Nos últimos dias para o prazo de submissão de trabalhos, chegou um pacote com uma obra inusitada: um mictório, intitulado como A Fonte e com a assinatura R. Mutt, 1917 – até então, ninguém sabia que este era um pseudônimo de Duchamp. O Salão dos Independentes aconteceu no dia 8 de abril, mas sem A Fonte. Após muita discussão, foi acordado que o urinol era um objeto “vulgar, imoral”, um plágio, e que não deveria ser admitido. “A Fonte pode ser um objeto muito útil em seu lugar de origem, mas seu lugar não é em uma exposição de arte e não é, por definição, uma obra de arte”, justificou a comissão em nota de resposta ao crescente interesse da imprensa no caso.

Decepcionado, Duchamp deixou a comissão. No mês seguinte, a revista dadaísta The Blindman, editada por Beatrice Wood, Henri-Pierre Roche e pelo próprio Marcel Duchamp, veio recheada de análises sobre o caso. Após uma fotográfia d’A Fonte em página inteira, um editoral defendia: “A fonte do senhor Mutt não é imoral, não é absurda, não mais do que é uma banheira. É um acessório que você vê todo dia. Não tem importância se Mutt fez a fonte com suas próprias mãos ou não. Ele ESCOLHEU. Ele pegou um objeto da vida cotidiana e posicionou de modo que seu uso comum desapareceu sob um novo nome e ponto de vista – criou um novo pensamento para aquele objeto”. Na sequência, a artista Louise Norton criticava a “Comissão de Censores”, chamava a obra de “o Buda do banheiro” e respondia: “A Fonte não foi feita por encanadores, mas pela força da imaginação”.

O READYMADE E A ARTE CONCEITUAL

A Fonte foi o quinto trabalho de Duchamp a utilizar a técnica que ele chamou de readymade, ou seja, selecionar e modificar “objetos já feitos” – os primeiros, também muito conhecidos, foram a Roda de Bicicleta (1913) e o Porta-Garrafas (1914).

Na tradição da história da arte, uma obra é fruto de um investimento manual de transformação de objetos (manipula-se as tintas e a tela e cria-se uma pintura, por exemplo). No caso dos readymades, a própria escolha do objeto é o ato estético. Com isso, Duchamp retorna, de modo mais incisivo, a uma questão meditada desde Platão: o que é a arte? Ao mesmo tempo em que qualquer coisa pode ser uma obra de arte, uma obra de arte não é qualquer coisa. Então como distinguimos estes “qualquer coisa”?Nas palavras do minimalista Sol LeWitt, "a ideia se torna a máquina que faz a arte".

Foto: Alfred Stieglitz
Primeira fotografia da 'A Fonte', publicada na revista dadaísta The Blindman em 1917 - Foto: Alfred Stieglitz
Vivendo em Nova York, Duchamp integrava a comissão de organizadores do Salão dos Independentes -
Pierre Pinoncelli urinou em um mictórios de Duchamp e foi preso por vandalismo quando martelou outro -

Por volta de 1915, Duchamp abandonou a pintura e buscou livrar-se do que ele chamava de “pintura retinal”, preferindo um trabalho “em serviço da mente”. Quando fez o painel Grande Vidro (iniciado em 1915 e não concluído, “abandonado” em 1923), por exemplo, lançou a obra com textos analíticos sobre a mesma, pavimentando o caminho para a arte conceitual. “As ideias eram mais importantes do que a realização visual do Vidro”, comentou anos mais tarde.

Em seu texto Art Of Filosophy (1969), o artista norte-americano Joseph Kosuth enfatiza que naquele momento o que interessava aos artistas não era propriamente criar obras, mas apenas formular questões. Fazer arte significava para eles questionar a arte e produzir comentários que tratassem de arte. Em sua visão, Duchamp devolvera à arte sua verdadeira identidade ao “perguntar por sua função” e descobrir que “arte (nada mais) é do que a definição de arte”. Para o filósofo Arthur C. Danto, neste ponto, quando a cognição é alcançada, a arte é apenas um estágio transitório no advento de um certo tipo de conhecimento, que seria justamente o conhecimento sobre o que é a arte. “A arte termina com o advento de sua própria filosofia”, argumenta ele no polêmico texto O Fim da Arte

SAINDO DA HISTÓRIA DA ARTE

Em uma passagem feroz, muito citada pelo movimento neoísta/greve da arte nos anos 1990, o sociólogo e filósofo Jean Baudrillard aponta: “A arte moderna deseja ser negativa, crítica e inovadora e perpetuamente quebrar barreiras, ao mesmo tempo que é imediatamente (ou quase) assimilada, aceita, consumida, integrada. É preciso se render à evidência: a arte não mais contesta qualquer coisa. Se é que o fez. A revolta é isolada; a maldição, isolada”. Sobre a assimilação institucional, Décio Pignatari tem uma ideia um pouco mais branda: “A ideia de belo hoje é uma membrana osmótica. Ela é vazada continuamente. Aquilo que está fora vai para o museu, o que vai para o museu vai para fora e a ideia de arte começa a dançar porque ela está em mutação”, comentou o poeta concreto em debate em 1996.

Em uma entrevista à BBC em 1968, a apresentadora Joan Bakewell observou: “Você está desmistificando a obra de arte dizendo que, se eu afirmo, isto é uma obra, isto a faz uma obra de arte”. “É, mas a obra de arte não é tão importante para mim”, destacou o dadaísta. “Eu não ligo para a palavra arte porque tem sido tão descreditada. Deliberadamente eu contribuí para esse descredenciamento. Queria me livrar porque de algum jeito muitas pessoas têm feito de uma adoração religiosa. Elas têm uma desnecessária adoração pela arte. E eu estive dentro o tempo todo e ainda queria me livrar”.

Ao mesmo tempo em que tentava se desvencilhar ou romper com a história da arte (e os conceitos de belo, obra etc), Duchamp foi levado à história da arte. A Fonte tornou-se ícone do modernismo, a Mona Lisa do século 20, com 13 cópias espalhadas pelo mundo, (a original de 1917 foi perdida) todas carregando a mesma aura de obra-prima imaculada – e, claro, custando caro por isso (€ 3 milhões em estimativa).

Mas ainda há um homem (artista? antiartista?) incutindo subversão e ateando fogo n’A Fonte, na tentativa de tirá-la da subserviência do cânone modernista. Em 1993, durante uma exposição em Nimes, no sul da França, Pierre Pinnocelli urinou em um dos mictórios de Duchamp e alegou que essa “apropriação” lhe dava o direito de ter a obra. Em 2003, em Paris, Pinocelli deu uma martelada em outra réplica da obra. Não chegou a quebrá-la, mas danificou o objeto e recebeu uma multa de € 200 mil por vandalismo.

Ex-mercador de arte e atualmente com 87 anos, Pinocelli com seu vandalismo está, como os dadaístas, questionando o sistema de valores da arte e as ruínas da vanguarda. Quando foi preso em 2003, ele afirmou que estava fazendo uma performance artística “se apropriando” da fonte e que o próprio Marcel Duchamp teria apreciado tal atitude.

Últimas notícias