Com apenas 13 anos de idade, a paulistana Karen Zolko acompanhou sua mãe numa viagem à então Tchecoslováquia. O ano era 1974. A viagem, um reencontro com feridas que não se fecham: Mônica Strásnka queria mostrar à filha as origens, memórias e raras lembranças materiais da família e de seu povo, dizimados pelo Nazismo que, já em 1939, tinha todo o Norte da Europa de língua alemã sob os bigodes curtos de Hitler. No Museu Judaico de Praga, em meio a desenhos e colagens produzidos por antigas crianças aprisionadas, a mãe encontrou o improvável: um dos papéis coloridos trazia a assinatura de Erika, sua irmã presa aos 12 anos pelos alemães que, aos 14, deixava de existir numa câmara de gás em Auschwitz.
“Minha mãe não pôde acreditar, era, sim, um desenho da minha tia Érika. Eu era muito nova, mas aquilo nunca me saiu da cabeça. Até imaginava que num campo de concentração houvesse apenas lugar para o uniforme listrado, nunca para desenhos coloridos”, lembra a agora produtora Karen Zolko. Ela não sabia, mas tinha ali um ponto de partida para a versão brasileira da exposição "As Meninas do Quarto 28" que, ao lado da sócia Dodi Chansky, depois de comover mais de 40 mil pessoas em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Brasília, a curadora traz agora ao Recife.
Com desenhos feitos pelas meninas presas num campo de concentração alemão localizado na então Tchecoslováquia, a exposição é aberta hoje à noite na Galeria Janete Costa, no Parque Dona Lindu, Boa Viagem. Uma rara oportunidade não apenas de reencontro com a história, mas de revisão da própria humanidade. No Recife, a mostra encerra sua temporada brasileira depois de percorrer países da Europa e Israel.
O recorte aproximado e particular do Holocausto traz o dia a dia de cerca de 50 meninas de Theresienstadt, na República Tcheca. A centenária fortaleza a 60 quilômetros de Praga, convertida num gueto preferencial para artistas, intelectuais e cientistas judeus, era usada como estágio antes do temido “leste” para os 20 minutos de convulsões, sangramentos e asfixia em que consistia o rito de execuções em massa sistematizado pelas câmaras de Auschwitz.
Érika, a mãe de Karen, tinha fugido do Nazismo para o Brasil em 1949. Depois da visita de 1974 às origens, tentou com a família por diversas vezes conseguir o desenho da irmã Érika. Não havia comunicação possível com a Tchecoslováquia comunista. Com a transição para a República Tcheca, em 1989, as informações fluíram, Karen enviou um e-mail apresentando-se e a resposta chegou com nova surpresa: no museu, havia não apenas um, mas 30 desenhos assinados pela tia eliminada pelos nazistas. Anos depois, Adriana, filha de Karen, descobriu a escritora alemã Hannelore Brenner, autora de um livro com a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer: "As Meninas do Quarto 28 "(publicado no Brasil, em 1994, pela Leya). A escritora não apenas reeditou o livro contando o desdobramento brasileiro de uma daquelas meninas, como o usou como base para a exposição que, depois da Europa, percorre o Brasil.
BAUHAUS NO GUETO
Em 1996, a escritora Hannelore trabalhava como roteirista de TV e rádio para a encenação da ópera "Brundibár" quando conheceu algumas sobreviventes de guetos. Em Theresienstadt, onde os vários artistas confinados eram recrutados para divertir os nazistas com seus espetáculos (e executados logo após, caso desagradassem), uma versão da ópera de Hans Krása fora montada com as crianças prisioneiras. Surgia daí a ideia de escrever o livro sobre o “Quarto 28” do alojamento L410, onde cerca de 60 meninas de 12 a 14 anos ficaram alojadas por dois anos durante a Segunda Guerra. Ali, mais especialmente, as meninas desenhavam como vazão do desejo de liberdade e criaram um lema, um hino e uma bandeira para uma pequena sociedade trancafiada sob o pacto de amizade e solidariedade eternas.
Batizada de "Ma’agal", cujo significado em hebraico é “círculo e perfeição”, a sociedade tem uma reprodução de sua bandeira na exposição. No Recife, é possível ver também uma réplica de 180 metros quadrados do próprio quarto, com sua mesa de lápis e papéis, além dos desenhos produzidos sob orientação e estímulo de Fiedl Dicker-Brandeis. Banida com seu marido em 1942, ela chegara ao gueto agarrada a seu material para aulas de arte.
Antes de ser novamente deportada para o gás de Auschwitz em 1944, a professora deixou a salvo duas malas com mais de três mil desenhos. Um acervo tristemente raro: das mais de 15 mil crianças que viveram em Theresienstadt entre 1942 e 1944, apenas 93 sobreviveriam. E com um intrigante padrão pictórico: os desenhos e – quando as tintas acabavam – colagens feitas com papéis furtados dos próprios nazistas, apresentam a escala cromática da Bauhaus: a professora havia sido aluna de ninguém menos que Paul Klee, um dos mestres da pioneira escola de arte e design também sepultada pelo Terceiro Reich.
As Meninas do Quarto 28. Abertura, hoje, 18h. Até 29 de outubro. Galeria Janete Costa, Parque Dona Lindu, Boa Viagem