Além de inserir a cidade no calendário de uma das maiores, e certamente a mais popular, exposição de arte pública do mundo, a primeira CowParade no Recife cumpre, involuntariamente, uma lacuna. Com as grandes galerias restritas a nomes consagrados e a suspensão de importantes programas oficiais de fomento, como o antigo Salão dos Novos ou o Spa das Artes, a mostra das vacas de fibra de vidro gigantes transformadas em “telas” serve como o principal canal para se ter um panorama amplo do que há de novo nas artes visuais praticadas em Pernambuco. As obras estarão expostas em 53 localidades, como o Marco Zero, Orla de Boa Viagem, Ponte Maurício de Nassau e Pátio do Carmo.
"A interação das obras com o grande público das ruas é muito importante para a gente. Até por ter as obras em contato com as pessoas além dos espaços mais convencionais das artes”, diz o artista visual e cineasta França Bonzai que, depois de algumas exposições de menor alcance, é um dos nomes selecionados para pintar uma das 53 vacas que, a partir de amanhã, tomam conta dos espaços públicos do Recife. “É muito interessante que, além de nomes estabelecidos, a exposição realmente tenha essa preocupação de dar visibilidade aos novos”. Ele confeccionou uma vaca cuja trama labiríntica em preto e branco nos faz, de alguma forma, ver o animal por dentro.
Evento de dimensão mundial, a CowParade foi criada ainda em 1988: o suíço Pascal Knapp criou, com a intenção deliberada do riso, diversas esculturas em forma de vaca. No ano 2000, os direitos de uso das esculturas foram adquiridas pelo norte-americano Jerry Elbaum. Depois de criada a CowParade Holding Inc., a ideia viralizou com a força que só o pop parece ter: mais de dez mil artistas já participaram de edições em todos os continentes. Com o Recife, é a primeira vez que a exposição aposta no Nordeste. De custo não informado (sabe-se que não menos de R$ 1 milhão), a mostra tem patrocínio da Extraframa - segundo os executivos da rede paraense, uma forma de retribuir a consolidação de mais de 20 lojas em um ano na praça local.
Para aportar prestígio e relevância, nomes conhecidos foram especialmente convidados: o xilogravurista J. Borges, o grafiteiro Derlon, os pintores Tereza Costa Rêgo, Dantas Suassuna, Roberto Ploeg e Raoni Assis. Além deles, a dupla de arquitetos Zezinho e Turíbio Santos e o estilista e artista Beto Kelner, em parceria com a atriz Fabiana Karla, e a pintora Marisa Lacerda, com Alceu Valença. Mas o foco mesmo é apostar no oxigênio dos pouco visíveis. “Em todo mundo, a CowParade tem a característica de fomentar e revelar novos talentos”, cofirma a francesa Catherine Duvignau, organizadora da CowParade, cujos direitos, no Brasil, pertencem à TopTrands, empresa especializada em grandes mostras de arte em espaços públicos. “Já conhecíamos a vocação cultural e artística de Pernambuco, mas ainda ficamos surpreendidos com a qualidade das obras”, reforça.
IDENTIDADE
Algumas obras chamam atenção pelo vigor. E não apenas as realizadas por aqueles que são artistas de profissão. A arquiteta Náide Lins, por exemplo, tingiu sua vaca de um laranja-flúor para evidenciar os três bambolês afixados na cintura do animal: uma alusão lúdica e direta a um determinado tipo de infância em extinção. A ilustradora Ana Blue caligrafou sua vaca azul com figuras de animais estilizados como uma graphic novel do fundo do mar. Sil Nascimento, a Baiana, coloriu a sua de cores psicodelicamente fluídas.
“Há muitas referências à força da cultura popular pernambucana”, comenta Catharine. Um regionalismo, contudo, que não cabe nos velhos estereótipos mais simplistas. Irônico, Jones Dante vestiu sua vaca como uma versão bovina do Homem da Meia-noite. Com apenas 14 anos, Louane Martins ordenou, ludicamente, ícones caros à cultura pernambucana - de Chico Sciense aos pastoris.
Poeta e cantor, o artista Tonfil é um dos que imprimiu doses renovadas de identidade regional à sua obra. Sua vaca, emoldurada nas patas com pés de cana de açúcar, traz o rosto de Maurício de Nassau, a ponte que traz seu nome e outros elementos da presença holandesa do Recife. “Como o símbolo e suporte da exposição é uma vaca, me ocorreu fazer uma associaçao com o Boi Voador de Nassau, um símbolo da história do Recife”, ele diz. A vaca ficará exposta justamente nas proximidades da ponte que Nassau viabilizou com o espetáculo de fazer um boi “voar”, amarrado em fios invisíveis. A CowParade ocupa as ruas do Recife até o começo de dezembro.