ÁGUA PRETA - No último sábado pela manhã, um paciente e encantado José Miguel Wisnick, professor e compositor paulistano contemporâneo requisitado por algumas das principais estrelas do Brasil, visitava obras de arte de grandes dimensões. Queria testar em que instalação funcionaria melhor a acústica para seu concerto-aula. Na noite anterior, em praça pública, a comunidade local se misturava a algumas dezenas de forasteiros para assistir a palestras sobre arte contemporânea. Cheio de cenas pouco prováveis para uma usina desativada, memória falida do fausto açucareiro, o festival Arte na Usina deste ano trazia indícios de uma mudança de longa duração, silenciosa, que vai recriando um dos pontos específicos da Mata Sul. Ali, onde o açúcar tem escrito sua saga de riquezas e perversidades sociais ao longo dos séculos, uma nova geografia social se vai erguendo com e através da arte.
“Não temos a pretensão de ser um museu com um recorte específico, com uma coleção ampla que contemple um ou outro aspecto da história da arte. O que temos aqui é o fato de que todas as obras oferecem experiências além de seus limites físicos”, diz o paraibano José Rufino, professor, um dos principais nomes da arte contemporânea brasileira. Por um feliz acaso, Rufino se tornou o curador permanente do projeto que vai povoando aquela usina com obras, como tem sido comum no universo da arte contemporânea, de nem tão simples compreensão. Na paisagem montanhosa onde construções, ferragens e utensílios jazem no meio de um pequeno oceano de cana de açúcar em 29 hectares, obras em que o conceito vale tanto ou mais que a materialidade de cada trabalho.
Tudo isso pode ser visto de maneira mais evidente até o próximo sábado, quando se encerra a terceira edição do festival criado para dar mais visibilidade ao projeto que vai, na medida do possível, transformando a propriedade numa versão pernambucana de Inhotim, o impressionante e mais importante museu brasileiro, localizado em Minas Gerais, de arte a céu aberto. “O festival é apenas o aspecto mais visível de um trabalho que não pára o ano inteiro”, diz o proprietário e empresário Ricardo Pessoa de Queiroz.
Em 2015, ele e Bruna, sua esposa, encomendaram a Rufino uma obra para decorar o jardim diante da casa-grande construída em 1940. “Não fui convidado formalmente para um projeto”, diz Rufino, que, numa das muitas conversas com o bisneto do fundador da Usina Santa Terezinha, teve o insight para transformar a massa falida da propriedade num grande equipamento sui generes de arte contemporânea. “Não sabemos ainda exatamente aonde vamos chegar, vamos testando nosso fôlego e fazendo tudo o que é possível”, diz Ricardinho, como é conhecido.
“Queremos que a arte provoque aqui um impacto semelhante ao que o açúcar provocou”, diz Rufino. Mais que “museu”, o termo “equipamento” parece mais adequado para explicar o lugar. No centro da propriedade, um grande jardim botânico com mais de 3,5 mil espécies, nativas e exóticas, vai se plantando para a contemplação de visitantes e, sobretudo, o uso de pesquisadores - uma espécie de obra de arte paisagística “útil”.
Através de um convênio com o Museu de Arte Metropolitana Aloísio Magalhães (Mamam) no Recife, artistas tem sido convidados para residências de criação na Usina. “São nomes e obras que vão sinalizando o que queremos. Quando o projeto tiver mais amadurecido, pensaremos em abrir editais para que artistas possam inscrever projetos. Mas a ideia é manter, ao contrário de Inhotim, a instituição ligada ao projeto sempre mínima”, diz Rufino.
A comparação com Inhotim não é aleatória. Foi justamente depois de uma viagem de turismo com a esposa Bruna ao gigantesco museu a céu aberto no interior de Minas Gerais que Ricardo Pessoa de Queiroz começou a ter o desejo, ainda que pouco claro à época, de transformar a propriedade familiar de longo histórico de falências. O parque de obras a céu aberto não está ainda devidamente aberto - pode ser visitado através de agendas e com as visitas promovidas diariamente durante o festival que segue até o próximo sábado.
Em Minas, o empresário Bernardo Paz adquiriu sua enorme coleção com recursos próprios - e hoje, por sinal, está sob prisão decretada em primeira instância por desvios de dinheiro público supostamente usados em Inhotim. “Lamentável que ele esteja envolvido com essas questões, mas não deixa de ser brilhante a obra que criou”, diz Ricardinho. Na Usina Santa Terezinha, ele vai constituindo sua coleção com uma dinâmica original. Em vez de adquirir obras prontas de grandes dimensões, previsivelmente mais caras, os artistas são convidados para desenvolver obras “consignadas” com a Usina. “Compramos o projeto e construímos em parceria”, diz Rufino. “As aquisições têm sido com recursos próprios, mas poderemos também, no futuro, recorrer às leis de incentivo à cultura do País”, completa Pessoa de Queiroz.
A obra que seria encomendada a Rufino para o jardim nunca saiu do papel. Em vez disso, perplexo com a memorabília da usina, o paraibano juntou uma quantidade incontável de velhas foices para cana, restos da maquinaria e fez uma espécie de templário daquela usina numa grande instalação no antigo hangar que faz lembrar uma velha e conhecida frase do antropólogo Claude Levi-Strauss sobre como um objeto, mais que sua funcionalidade, estará fadado a guardar a memória social de seus usos.
Ao lado dos proprietários da usina e da publicitária Bárbara Maranhão, o próprio Rufino passaria a integrar a pequena Associação Jacuípe, criada por eles para gerenciar o programa de aquisição de obras e as ações de longa duração.
“Além de montar a estrutura, temos que pensar também em formas de construção de público”, comenta a produtora olindense Maria Chaves, uma das diretoras da Proa Cultural, empresa contratada para viabilizar logisticamente o evento. “Estamos sentindo também uma articulação muito forte com as secretarias de educação”, diz ela, diante, por exemplo, de uma mesa redonda a céu aberto, que encheu, na última segunda, a praça da vila da usina com alunos e professores para discutir a obra de Hermilo Borba Filho. Oficinas como a de documentário para cinema com a cineasta pernambucana Tuca Siqueira; ou de interpretação, com o ator e diretor carioca Guilherme Leme, tiveram as vagas preenchidas semanas antes do festival. Todas gratuitas.
No primeiro final de semana, a oferta de hospedagem domiciliar nas residências locais teve sua oferta toda preenchida. A expectativa é de que sábado, quando o cantor Chico César encerra com um show a programação de oficinas, exposições, mostras de filmes e rodas de diálogo, a ocupação se repita. “Uma das estratégias para atrair mais público do Recife foi a de oferecer transporte gratuito para grupos de no mínimo dez pessoas (através do telefone 3419-8070)”, diz Maria Chaves.
QUEBRA DE PARADIGMA
O aumento de público reforça a pretensão dos organizadores. “Queremos resiguinificar esse lugar sócio-economicamente através da arte”, diz Rufino. “Esse trabalho é muito diferente de uma curadoria convencional. Queremos uma obra que atue na vida das pessoas. Existe um conceito chamado arte útil que resolve questões na prática, que aglutina pessoas, que faz muitas vezes o papel do Estado. Além das hospedagens domiciliares, um circuito de ativação econômica vai acontecendo, com a criação, por exemplo, de já quatro restaurantes credenciados na comunidade. A quebra de paradigma de que a relação de trabalho na região tem que ser apenas com cana de açúcar já começou”, continua.
A paisagem física se transforma mais facilmente. Numas das encarpas motanhosas, uma obra de Marcelo Silveira reproduz o atrium de inspiração andaluza na antiga casa-grande; Num vale, uma instalação de Márcio Almeida traz uma espécie de labirinto ao redor do qual plantas de capital simbólico como as trombetas de uso místico-religioso compõem um “Eremitário” - um abrigo de eremitas numa espécie de conto não escrito sobre fábulas locais.
Uma antiga destilaria foi transformada por Paulo Meira na antena de transmissão de uma rádio comunitária chamada de Catimbó - onde uma programação permanente abastece a vizinhança e cujo nome provocou suspeitas, já superadas, com parte da população evangélica local.
“Essas obras são todas ações experienciais que se relacionam com o conjunto, a cultura local, a cultura religiosa do lugar. Não são obras no plano formal, mas no experiencial”, rubrica Rufino.
A comunidade vai retribuindo com surpresa. “Nunca tinha ido num museu antes, e é muito bom ver a arte chegando aqui. Acho que talvez nem estejamos preparados para todo tipo de arte, como aquelas performances com pessoas nuas”, dizia, na sexta-feira passada (17), a analista de sistema Jaqueline Deodato, 29 anos, moradora de Xexéu. Ao lado de vizinhos e visitantes, ela assistia à palestras do gaúcho Hugo França sobre sua extensa obra de esculturas mobiliárias feitas a partir do resíduo de grandes árvores mortas.
Em sua fala, a moradora fazia alusão à série de episódios recentes em que museus e exposições no Brasil são acusados de promover formas distintas de depravação moral. E achava curioso ver arte contemporânea perto de casa, longe das instituições predeterminadas. “Precisamos conhecer para saber do que podemos gostar”.
Passado o festival, a Usina Santa Terinha continua com sua nova agenda, não mais pautada (apenas) pela cana de açúcar. Os cerca de 40 alunos retomam as aulas na Escola de Música; artistas como Paulo Bruscky, Daniel Santiago e a mineira Laís Mirra começam residências para implementar novas obras no lugar.
Escritores, como José Luiz Passos, que ano passado finalizou ali seu último romance, também devem começar hospedagens criativas. No show que abriu a programação deste ano no Arte na Usina, o cantor Otto sintetizava, no palco, a (nem tão) pequena transformação que se vai se dando naquele enclave da antiga monocultura açucareira. "Isso aqui só existe por causa do açúcar. O açúcar provocou muita miséria e muita riqueza, mas é, sem dúvida, uma das origens de nossa riqueza cultural. Depois do período de decadência, é bom ver esse lugar renascendo com arte".