Quando voltou ao Rio de Janeiro, depois de quatro anos trabalhando no Carrossel, em Paris, Rogéria foi logo assediada pela festiva imprensa de celebridades do começo dos anos 1970. Todos queriam saber como foi o tempo na casa de espetáculos onde travestis do mundo todo ganhavam sua definitiva unção artística. Logo em seguida, a loira de voz grave e visual Marilyn estrelou um espetáculo sob direção de Agildo Ribeiro, virando habituê de programas de auditório. Desde então, está nas telenovelas que animam os lares nacionais. “Rogéria costuma dizer que é a travesti da família brasileira”, conta, risonha e atenta, a também atriz Leandra Leal. “O Brasil é realmente um País de muitas contradições.”
Leandra conhece bem as contradições. Carioca, 19 filmes, dezenas de novelas, um dos rostos mais conhecidos da TV e gênio notório de sua geração de atores, ela está ralando para conseguir construir seu primeiro filme. Vai estrear como diretora com um documentário ficcionalizado sobre a primeira grande geração de travestis artistas do Brasil, intitulado Divinas divas. “Não imaginava que ainda houvesse isso, mas os ‘nãos’ dos possíveis patrocinadores foram muito escorregadios, há um preconceito super velado”, diz Leandra. “(No filme), a gente mexe com dois tabus: o gênero e a velhice. Essa é a primeira geração que está chegando a essa idade”, explica ela sobre a cena artística protagonizada por esses nomes que circulam (com maior ou menor trânsito), entre a TV, a música e, sobretudo, o brasileiríssimo teatro de revista.
Além de Astolfo Barroso Pinto, nome com o qual a bem-humorada e fervorosamente católica Rogéria nasceu, o filme contará as trajetórias de Jane di Castro, Waléria, Camille K, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios. Juntos, eles representam a primeira geração de homens que se travestiram, em plena ditadura militar, nos palcos cariocas. Todos hoje com idade em torno dos 70 anos, e mais ou menos 50 de serviços prestados às artes brasileiras. “Esse é o momento de lançar o filme, não podemos esperar mais: elas carregam histórias de vidas incríveis e uma tradição que não encontrou eco nas novas gerações de travestis. São artistas: cantoras, atrizes e comediantes de primeiríssima qualidade, cuja performance nos palcos envolve e emociona profundamente”, diz Leandra, lembrando que suas personagens não se encaixam noutros estereótipos com os quais definimos o travestismo no Brasil. Nenhuma delas precisou se prostituir para viver. “São muito talentosas. Ninguém fica em cartaz 50 anos à toa”.
Nos últimos três anos, Leandra tem bancado a produção com recursos próprios. Depois de ouvir muitos “nãos”, resolveu, então, firmar parcerias diretas com o público e lançou uma campanha de quotas particulares de patrocínio, ou crowdfunding, a popular vaquinha virtual. Precisa ainda captar R$ 150 mil para completar os R$ 600 mil do orçamento total. “Lançamos o crowdfunding para mobilizar quem acredita na causa e pode contribuir com qualquer quantia. Mais do que uma causa gay, as Divinas Divas representam um símbolo da luta pelos direitos civis individuais no Brasil – que estão seriamente em risco nos dias atuais”, sustenta.
Quem quiser pode contribuir com qualquer quantia através do site www.benfeitoria.com/divinas. A quota de R$ 100 dará direito a assistir, nos próximos dias 13 e 14 de dezembro, ao espetáculo de 50 anos de carreira delas que será usado como fio condutor e ápice narrativo do longa. O show, naturalmente, será realizado no Teatro Rival, casa mantida pela família de Leandra na Cinelândia, no Rio. Foi lá que Leandra viu, pela primeira vez, as divas ao vivo. “Quando o Rival fez 70 anos, reuniu muita gente que tinha passado pela casa. E minha mãe (a atriz Ângela Leal) pediu para elas fazerem o espetáculo. Vi a estreia e fiquei emocionada de ver o público fiel, entusiasmado. Foi assim que fui chegando”, recorda ela. “O nosso espetáculo tem um acabamento mais biográfico”, adianta.
A montagem é só o fio condutor do documentário. “O filme as apresenta na rotina, suas memórias, trajetórias. São sobreviventes, mas sobreviventes vitoriosas. O momento em que várias delas resolve deixar o País soa quase como rito de passagem na vida das personagens. A ditadura tinha essa coisa de permitir o travestismo nos palcos e reprimir nas ruas. Várias eram presas por estar afeminadas. Tinha um cara que ficava na porta do Rival com um limão para jogar na calça. Se o limão não descesse, a calça era considerada apertada demais e afeminada. Muitas saíram do Brasil para poder viver como queriam”. Obter respaldo no exterior era a forma de ser protagonista no palco – e também na vida. O protagonismo que Leandra agora quer contar.