Com o tempo, firmou-se consenso de que a trilogia O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, é um dos maiores épicos do cinema norte-americano em toda a sua história. Essa obra-prima, inspirada no romance de Mario Puzo, reaparece agora em todo seu esplendor através da restauração digital supervisionada pelo próprio diretor. Está sendo lançada pela Paramount em cofre com três DVDs. Estes contêm um único “extra”, mas de que dimensão! Trata-se da opção de assistir aos filmes com o próprio diretor comentando, cena por cena. Vale por um curso de cinema.
Quanto já não se escreveu sobre a clássica abertura de O Chefão 1 (The Godfather, O Padrinho, no original)? Em meio à penumbra, um rosto desconhecido, com sotaque italiano, diz a frase inicial: “Eu acredito na América”. Mas todo o resto da fala é uma negação dessas palavras. Começa a contar a sua história. Sua filha havia sido estuprada e a polícia nada fizera. A câmera se afasta, milímetro por milímetro, e começamos a divisar outro personagem, de costas. Ele faz um gesto com a mão e um cálice de bebida é servido ao homem, para que ele tenha forças para prosseguir. A câmera se afasta mais e o novo personagem entra em cena. É o “padrinho”, Vito Corleone, na interpretação genial de Marlon Brando. A cena se aclara. O homem viera pedir vingança.
É uma das mais geniais aberturas de um filme em todos os tempos. O curioso é descobrir, pelo comentário de Coppola, que não era para ser assim. Sua ideia inicial era começar pela festa de casamento, na qual se definem as relações entre os personagens, suas características e motivações. Mas preferiu essa abertura no escuro do escritório do homem poderoso.
Coppola foi perdendo atores ao longo da saga, filmada em três momentos muito diferentes. Os dois primeiros são relativamente próximos. O primeiro Chefão é de 1972, o segundo, de 1976. Mas o terceiro só apareceria em 1990. Para este, Coppola perdeu um dos seus personagens mais marcantes, o advogado da família mafiosa, Tom Hagen, vivido por Robert Duvall, presente nos dois primeiros filmes. Não houve acordo financeiro para o terceiro e Coppola teve de se virar sem Duvall. “Diluí seu papel em vários advogados na terceira parte”, diz. Funcionou bem. Mas jamais saberemos como ficaria com Duvall.
Outro desfalque foi o de Richard Castellano, intérprete de Clemenza, carismático mafioso da ‘famiglia’ Corleone, amigo de juventude de dom Vito. Nesse caso não foi dinheiro, mas Castellano exigiu que no segundo filme ele próprio escrevesse seus diálogos. Inaceitável. Coppola foi obrigado a “matar” o personagem. Seu substituto, Frank Pantangelli (Michael V. Gazzo) proclama, na primeira cena em que aparece, que Clemenza “havia morrido”.
Se os acidentes de percurso são esclarecedores, mais ainda parecem as referências internas do diretor. A mais forte, Shakespeare, influência que faz da trilogia uma tragédia contemporânea. De certa forma, a saga pode ser vista, entre muitíssimas outras coisas, como a troca de poder entre o velho Corleone (Marlon Brando) e seu descendente, Michael (Al Pacino), como em Rei Lear. Michael ascende na primeira parte da trilogia, atinge o ápice na segunda e decai na terceira, sendo, por sua vez, substituído pelo novo chefão - Vincent (Andy Garcia), seu sobrinho. A personagem feminina Connie, irmã de Michael (e interpretada por Talia Shire, irmã de Coppola), é uma versão moderna de Lady Macbeth. E assim por diante.
Há quem prefira uma ou outra parte. A primeira vale-se do impacto da novidade. A segunda é mais complexa. A terceira não obteve a mesma repercussão e foi tida como exemplo de déjà vu. Claro, existem, entre os três filmes, pontos mais altos que os outros. Mas o conjunto é magnífico e assim deve ser visto, em seu todo. Tem a grandeza dos afrescos italianos.