“Tudo bem ser gay, mas não precisa ser tão bicha”, “Já não basta ser gay, ainda tem que ser afeminado?” ou “Eu sou viado, mas ainda bem que as pessoas não percebem” são frases corriqueiras e aparentemente inocentes, mas que carregam uma violência intrínseca. A homofobia não declarada aparece maquiada nos discursos cotidianos, ecoando até daquelas pessoas “gente fina”, ou, pior, pode nascer no íntimo daqueles que são fatalmente golpeados por ela.
Lançado na internet no último sábado (20), o documentário Bichas, idealizado pelo estudante de publicidade Marlon Parente, de 23 anos, é um grito de alerta. Concebido sob a perspectiva de seis jovens homossexuais que enfrentaram a sanha de uma sociedade machista e preconceituosa, o filme apropria-se da palavra “bicha”, enquanto insulto, para preenchê-la com significado de empoderamento. Produzido em 100 dias, o filme germinou como uma resposta à agressão, abuso e discriminação.
Marlon conta que estava a caminho de um restaurante de mãos dadas com um amigo quando um motoqueiro estacionou ao seu lado, sacou uma arma e ameaçou atirar – por puro incômodo com os dois. “Ele não queria dinheiro. Ele queria nos agredir por algo que não é justo”. O número de boletins de ocorrência por crimes de homofobia é espantoso e semeia ainda mais o medo. “Estávamos com medo até de prestar queixa”, confessa. “No final deu tudo certo e fomos bem atendidos, mas no início o sentimento era de desamparo e solidão”, completa.
Ele enfatiza a sensação de abandono lembrando que Pernambuco conta com um Centro Estadual de Combate à Homofobia, mas que eles sequer sabiam de sua existência. “A nossa sorte é que um dos meninos que estavam com a gente conhecia alguém desse núcleo, por isso tivemos todo o apoio, mas essa é uma informação que deveria ser acessível para todo mundo”, pontua.
Ao longo de 39 minutos de filme, conhecemos e somos confrontados pelos depoimentos dos pernambucanos Orlando Dantas, Peu Carneiro, João Pedro Simões, Italo Amorim e Bruno Delgado, e do natalense Igor Ferreira.
Quase um século depois da história narrada em A Garota Dinamarquesa – drama em exibição em circuito comercial, ambientado na Dinamarca da década de 1920, quando a primeira transexual registrada, Lili Elbe, foi diagnosticada como doente devido à sua identidade de gênero – alguns dos depoimentos parecem apavorantes e transpassam um sentimento de paralisia. Em um dos momentos mais desconsoladores da entrevista, Bruno conta que, aos oito anos, foi submetido a uma Terapia Cognitivo Comportamental com o intuito de “corrigir” sua personalidade. “Comecei a ser treinado para agir diferente. Na verdade, comecei a ser ensinado que tudo que eu fazia era errado”, relembra. “Ela gravava tudo que eu falava e depois me fazia ouvir. Ela me fazia repetir tudo que eu dizia com outra voz para treinar uma voz mais masculina”, discorre.
Em entrevista descontraída com o Jornal do Commercio, na casa de Marlon, na Zona Norte do Recife, cada um lembrou sua história particular de vida, que muitas vezes representa tantos outros. Em meio às risadas, por vezes o silêncio e a indignação inundavam a sala. Peu abordou o episódio do lixo, contado no documentário. “Os meninos me agrediram no colégio, mas, quando fui encaminhado para a psicóloga, no discurso o errado era eu. Tentaram me fazer acreditar que fui desrespeitado porque o meu comportamento não era correto, mas eu só estava dançando”. Já Italo não conteve o choro: é na voz dele que o espectador conhece a memória do motoqueiro armado, e é também no mesmo brado que entende a necessidade de “sair do armário”. “Aquele dia foi um divisor de águas na minha vida”, avalia.
Bichas atingiu 100 mil visualizações na tarde de ontem, compartilhado até pelo deputado federal do Rio de Janeiro Jean Wyllys. Surpreso com a repercussão, Orlando conta que até na Espanha tem gente repassando o vídeo. “Já recebemos mensagens de pessoas querendo traduzir para o sueco, francês, inglês, espanhol, português e alemão”. De asas abertas, o documentário foi escolhido por um curador no Rio para apresentação em maio no Festival O Cubo de Cinema. Por aqui, eles participam de um debate na Universidade Federal de Pernambuco no dia 23 de março.
Marlon já pensa além: quer investir no audiovisual e alcançar outros públicos conferidos na sigla LGBTQ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros/Transexuais e Queer). “Recebemos muitas mensagens na página. Muita gente quer mostrar sua história”, finaliza.
Assista ao documentário: