A atriz carioca Leandra Leal teve uma infância incomum. Filha de atriz e neta de empresário teatral, desde cedo ela foi acostumada às coxias. A diferença é que o Teatro Rival, pertencente ao avô Américo, foi o principal palco dos shows de transformistas – eufemismo para travestis – que fizeram a fama do Rio de Janeiro da década de 1970 até meados dos anos 1980.
Com toda essa memória afetiva carregada através dos anos, Leandra embalou tudo o que viu com o celofane do carinho e juntou oito dos principais artistas do Rival no documentário Divinas Divas. O filme estreia nesta quinta-feira (22/6) no Cinema da Fundação/Museu, em Casa Forte, e no Cinema São Luiz, dentro da programação da Sessão Vitrine/Petrobrás.
Quem acompanhou de longe essa movimentação, principalmente pelas revistas Manchete e Fatos e Fotos e a TV Manchete, deve lembrar das personagens de Divinas Divas, todas ainda majestosas, montadas em vestidos longos e maquiagem excessiva. Estão no filme Divina Valéria, Jane Di Castro, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Brigitte de Búzios, Camille K, Marquesa e, claro, Rogéria, talvez a mais conhecida travesti do Brasil em todos os tempos.
Com respeito e muita dedicação às suas divas – todas na casa dos 70/80 anos – Leandra e a montadora Natara Ney dividiram espaço para que todas contassem suas histórias do passado, dores e amores, e mostrassem que ainda estão em forma na arte do canto. Sim, todas elas ainda cantam divinamente, com todos os excessos do romantismo e a dedicação de uma vida ao ato de ser mulher.
INTIMIDADES
Com quase duas horas de duração, Divinas Divas gira em torno de um show em que elas vão se apresentar no Rival, 10 anos depois do último encontro. Esse show, que aconteceu em 2014, é o que se pode chamar de canto do cisne. Entre um ensaio e outro, Leandra intercala as conversas que teve em grupo, com as intimidades de cada uma delas.
Como sempre, as histórias são surpreendentes, emocionantes e engraçadas, como só acontece nas vidas de quem se deu por deu completo, que lutou contra o preconceito e fez da vida um passo de dança. Chamadas de bonecas, sapatas ou travecas, elas lutaram olimpicamente contra toda sorte de desvantagem. Mas algumas também foram aceitas por mães e pais, que não se sentiram envergonhados pelos filhos que tiveram.
Brigitte de Búzios, considerada uma brazilian bombshell, quando morou nos Estados Unidos, no começo dos anos 1970, levou toda a família para assistir a um show dela em Nova York. Naturalmente, elas tiveram que enfrentar muitos problemas. Marquesa, a quem o filme é dedicado, conta que a mãe o internou num sanatório.
Ainda hoje sem papas na língua, Rogéria continua a mesma, disparando palavrões e cantando em francês – como Divina Valéria, que se derrete numa versão em espanhol de My Way. A música e o teatro foram o berço de cada uma. Talvez um pouco diferente para Eloína dos Leopardos, que levou para os shows um erotismo velado, com muitos homens pelados em cena.
Respeitoso, reverente e comovente, Divinas Divas vai além da homenagem para dignificar as trajetórias dessas artistas que fizeram do Brasil um lugar suportável, na longa noite de torturas a que o País foi vítima nos anos negros da Ditadura Militar.