Lançado em 1979, embora feito em 1975, Bush Mama é, sem dúvidas, um dos filmes mais marcantes da mostra L.A. Rebellion, que integra a programação do X Janela Internacional de Cinema do Recife. Apesar de retratar a vida no gueto californiano, o longa do diretor de origem etíope Haire Gerima tem uma força que transcende essa localidade específica, sobretudo por seu arrojamento político.
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Bush Mama gira em torno de Dorothy - interpretada pela cativante atriz Bárbara O. Jones -, mulher negra que depende de benefício governamental para sobreviver em meio a uma sociedade preconceituosa, machista e desigual. As primeiras cenas mostram uma mulher passiva e até mesmo acomodada com a violenta realidade em que vive, como se fosse normal assistir da janela de casa a assassinatos aleatórios de homens negros cometidos pela polícia.
Sem conseguir emprego, Dorothy vagueia, repetitiva e entorpecidamente, de sua residência até a assistência social, onde as burocratas a instruem incisivamente a abortar, sob a ameaça de cortar o benefício se ela der à luz ao segundo filho. Seu marido, T.C. (Johnny Weathers), veterano do Vietnã, pensou que seria recebido como um herói em seu retorno para a terra do Tio Sam. Entretanto, acabou sendo preso por um crime que não cometeu.
São as cartas que eles trocam enquanto T.C. está encarcerado o ponto alto do filme. A fotografia de Roderick Young e Charles Burnett, sob a edição, produção e direção de Gerima, tem a incrível capacidade de fisgar o espectador quando as mensagens escritas nas cartas são ressoadas em tom confessional, com um enfoque nas expressivas feições do casal protagonista. "Os verdadeiros criminosos continuam em liberdade", diz T.C. numa das suas cartas.
É justamente a partir dessa injustiça e desse contato que Dorothy passa a perceber que é possível, sim, combater um sistema opressor. E a mulher apática das primeiras cenas, então, começa a se esvair e a abrir espaço para uma surpreendente espécie de heroína militante. O que pode ser constatado a partir do momento em que ela passa a observar um cartaz que ilustra uma negra carregando um bebê no braço e um fuzil no outro, o qual foi parar em sua parede através da influência de uma vizinha.
O fim da narrativa mostra uma Dorothy completamente diferente. Ela está liberta das amarras do passado. O que é culminado na cena em que ela joga fora a peruca que vestia 24 horas, numa declaração revoltada dirigida ao marido. Raro título projetado em 16mm, Bush Mama é um combo de criação artística e composição política. É uma crítica atemporal ao racismo institucional. Um soco no estômago.
O filme será reprisado neste domingo (12), às 20h30, no Cinema do Museu, em Casa Forte, Zona Norte do Recife. A exibição marca o encerramento do X Janela Internacional de Cinema do Recife.
Mostra L.A. Rebellion
Como uma alternativa ao cinema clássico de Hollywood, surgiu, nos anos 1970, o movimento L.A. Rebellion (Rebelião de Los Angeles, em livre tradução), formado por realizadoras e realizadores afro-americanos que estudaram na Escola de Cinema da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Uma produção política, experimental e necessária do cinema negro que foi trazida ao Brasil, pela primeira vez, por meio do X Janela Internacional de Cinema do Recife, evento consagrado na sétima arte que segue até o próximo domingo (12) nos cinemas São Luiz e da Fundação Joaquim Nabuco - Cinema do Museu.
Entre longas e curtas-metragens, 16 filmes integram a mostra L.A. Rebellion: Um Novo Cinema Negro, em cópias que vão do DCP ao 16mm. Entre os selecionados pelo curador Luís Fernando Moura e pelo curador convidado Victor Guimarães, estão os títulos Bush Mama (1979), longa antológico e pouco acessível de Haile Gerima (que assina o filme como responsável, não como diretor); O Matador de Ovelhas (1978), clássico longa de Charles Burnett, um dos diretores com maior visibilidade no grupo e que receberá o Oscar honorário no ano que vem; e Filhas do Pó (1993), longa da realizadora Julie Dash, primeira diretora negra a ter um filme em circuito comercial nos Estados Unidos.
Segundo Luís Fernando, o fato de desconhecermos a esmagadora maioria desses filmes no Brasil revela uma espécie estranha de apagamento historiográfico. “Pareceu um desafio instigante a nós do Janela que o festival se articulasse para buscar essa produção, que cria com energia e inventividade deslumbrantes um ponto de vista das populações negras na história recente do cinema americano", afirma o curador, ressaltando que os filmes em seu conjunto "são marcados tanto por uma atenção à realidade cotidiana de comunidades negras na Califórnia, que ganha narrativas e potentes retratos realistas, quanto por uma faceta alegórica de crítica social".
Outra marca importante dessa produção é que muitos filmes são centrados no ponto de vista feminino, mesmo os dirigidos por homens. O que casa bem com o programa de clássicos da 10ª edição do Janela, batizado com o tema Heroínas. "A figura da mulher em casa é recorrente, assim como a das familiares de presidiários ou ex-presidiários, por exemplo, mas também a de mulheres que buscam autonomia sobre o seu corpo e sua vida ou protagonismo histórico", acrescenta Victor Guimarães, tomando como exemplo Bush Mama e Filhas do Pó, além de curtas de realizadoras como Ciclos e Chuva.