Há duas maneiras (entre várias) de encarar o filme A Forma da Água, que dá ao seu diretor Guillermo del Toro 13 chances de levar um Oscar para casa, na cerimônia que acontecerá no dia 04 de março em Los Angeles. A primeira delas é por sua forma – o estilo que se tornou quase uma rubrica deste cineasta mexicano. A outra é pelo conteúdo, tão despretensiosamente fluido que oferece o risco de escorrer pelos dedos a qualquer momento, como água.
Forma e conteúdo não deveriam caminhar juntos numa questão como esta? Sim, e caminham, especialmente se consideramos que o recipiente favorito de Del Toro para envasar um conteúdo é propiciar uma abertura para que ele siga ou se detenha em sua trajetória. Livre arbítrio (interpretação) é palavra-chave em sua filmografia.
Del Toro é famoso por suas construções oníricas (O Labirinto do Fauno, 2006), ricas em metáforas (A Colina Escarlate, 2015), facilmente inseridas no gênero fábula, no qual figuras antropozoomórficas (que cruzam semelhanças entre o ser humano e outros animais) estão sempre em proeminência.
Do ponto de vista de sua arquitetura externa, A Forma da Águaé um sci-fi retrô, localizado na vigência da corrida espacial, a partir do final dos anos 1950, no contexto da Guerra Fria, no qual se acirrou a rivalidade entre as duas potência emergentes pós-Segunda Guerra Mundial: Estados Unidos e União Soviética. Aí inserido, podemos contar com os clichês propositais do gênero, em termos de papéis x situações, e até com uma luz meio filtrada que remete aos filmes noir, que conheceram seu ápice também nos anos 50.
No que diz respeito ao núcleo, o filme de Guillermo del Toro é uma linda história de amor, repleta de poderosas insinuações, eróticas e para além delas. A água, elemento simbolicamente ligado aos sentimentos, é por onde navegaremos o tempo todo, agarrados aos protagonistas deste romance entre duas espécies que parecem distintas, mas se mostram complementares, ou complementadas pelo amor que a tudo e a todos consegue envolver. Mesmo que às vezes involuntariamente, mesmo contra todas as chances de sucesso, tão forte que transforma toda estranheza em semelhança.
A começar pela presença líquida do título – A Forma da Água – Del Toro nos propõe o primeiro enigma. Como dar forma ao que, por definição, não a possui? Assim como os sentimentos mais profundos, quando livres de impedimentos, a água segue um fluxo contínuo como a correnteza de um rio. Quando detido ou represado, o líquido encontra duas soluções: buscar o caminho de menor resistência, apropriando-se de tudo o que o cerca; ou exercendo violenta pressão a ponto de jogar pelos ares aquilo o que o detém, custe o que custar.
SENTIMENTO QUE ENVOLVE TUDO
Esta bela concepção é entregue ao espectador a todo momento, embalada pelo amor entre Elisa Esposito (Sally Hawkins), a faxineira de um laboratório secreto do governo norte-americano, e o homem-anfíbio (Doug Jones), lá feito prisioneiro para ser cruelmente testado e estudado por cientistas.
“Incapaz de perceber a sua forma, eu encontro você toda à minha volta. Sua presença enche meus olhos com seu amor. Ele torna meu coração humilde, porque você está em todos os lugares”, dizem os versos da cena final, que perseguem o espectador na saída da sala escura de exibição, acompanhando-o ainda por muito tempo depois.
O encontro entre Elisa e a Criatura – capturada num lago perdido nas selvas amazônicas, tratado como um deus em seu lugar de origem e como uma “coisa” pelos seus captores – é argumento para aquele amor avassalador que explode entre duas pessoas, num processo de fissão e fusão. Mas é também pano de fundo para falar do amor que só prospera quando preenche todas as brechas e saliências, quando escala os obstáculos com a naturalidade de quem sabe que nada é capaz de se opor à sua maleabilidade e perseverança.
É neste ponto que o filme de Guillermo del Toro volta os olhos para uma sociedade adoecida pela falta de amor e excesso de dogmas. A supremacia baseada na raça; o esmagamento dos que não se encaixam nos padrões hegemônicos; as barreiras culturais que funcionam como tanques onde se quer aprisionar aquilo que deveria ser deixado livre: o sentimento.
Arrematando tudo, uma trilha sonora repleta de canções que vão escorrer pela garganta como a lembrança daquele amor que, por algum motivo, não conseguiu sobreviver às diferenças.