Se é verdade que as salas de cinema podem ser chamadas de catedral, é porque estão ligadas a uma espécie de culto ou religião. Sendo assim, devemos acreditar também que, entre seus seguidores, há aqueles que são considerados seus sacerdotes. Então, quem, no mundo do cinema, representaria papel semelhante? Sem dúvida, o cineasta americano Martin Scorsese. Não há outra a resposta possível, principalmente se você visitar a Exposição Martin Scorsese, montada em dois andares da Cinemateca Alemã, em Berlim, aberta até 12 de maio deste ano.
Palco de outras montagens semelhantes, dedicadas ao alemão F.W. Murnau e ao sueco Ingmar Bergman, partiu da Cinemateca Alemã a ideia de montar a exposição sobre Scorsese. Inaugurado no começo de janeiro, o espaço ainda não foi visitado pelo diretor, que não encontrou hora na sua agenda – por causa das pós-produção do seu novo filme, The wolf of Wall Street – para vir a Berlim. A saída foi enviar um vídeo para agradecer e dizer que o público está vendo ali “objetos pessoais das paredes e salas do meu escritório e do meu apartamento”.
O diretor participou ativamente na escolha da memorabilia exposta Talvez por isso ela só possa ser comparada à realizada pelos parentes de Stanley Kubrick na Cinemateca Francesa. Tanto uma quanto a outra nos fazem viajar por universos pessoais reconhecíveis e amados por milhares de fãs. Scorsese, que acabou de completar 70 anos, abre seu baú de memórias e revela nos mínimos detalhes todo seu amor pelo cinema. A exposição traz cerca de 600 peças, entre objetos de cenas, fotografias, storyboards e uma miríade de itens que ele carrega desde a infância. Além, é claro, de cerca de duas horas de material audiovisual tirados de sua obra e gravados especialmente para o evento.
Ha todo um roteiro para o cinéfilo seguir a exposição. São três módulos. O primeiro dá uma grande geral no seus temas – família, irmãos, relações entre homens e mulheres, heróis solitários e Nova Iorque. A Big Apple, onde nasceu, ganhou um espaço que junta material de filmes como Gangs de Nova Iorque, Touro indomável, Os bons companheiros e Taxi driver, além de um planta baixa com os bairros onde se passam as ações dos filmes e as de sua própria vida. Ele cresceu em Little Italy, um bairro ao lado do Soho não muito distante de Hell´s Kitchen.
A seção é recheada por fotos inéditas, roteiros, memorandos de filmagens e objetos de cena que fazem qualquer fã chorar de emoção. Imagine você ficar a três centímetros da Palma de Ouro que Scorsese ganhou por Taxi driver. Ou das as armas e roupas originais dos personagens de Gangs de Nova Iorque. A coleção de objetos faz com os olhos dos fãs se arregalem a cada minuto. É só dar um passo e de repente você está vendo a roupa ensaguentada de Max Caddy, o psicopata interpretado por Robert De Niro em Cabo do medo ou o boné que o ator usou em Caminhos perigosos.
A segunda sala é devotada ao cinema – de quando começou a ver filmes até sua devoção pela obra outros de outros diretores, que culminou na criação da Film Foundation, implementada para preservar e restaurar filmes de qualquer lugar do mundo. Cada objeto parece contar um pedaço da vida de Scorsese. Um dos mais lindos é um storyboard que desenhou aos 11 anos, sobre um filme intitulado The eternal love. Na parede, um grande painel, desenhado come fosse um filme ilustrado, no formato Cinemascope, já previa todo o futuro do menino asmático, que pouco saía de casa.
Seguindo o percurso, somos surpreendidos com cartazes originais de filmes do Neo-realismo italiano e da dupla Powell-Pressburger, além de uma relíquia de Sapatinhos vermelhos: os próprios sapatos que dão título ao filme. Há, também, a correspondência que ele recebeu de cineastas famosos – Akira Kurosawa, Nagisa Oshima, Andrzej Wajda e Louis Malle, entre outros – sobre o problema das cores esmaecidas dos filmes. Graças a ele, a Eastman Kodak produziu uma nova película, feita para garantir a sustentação das cores por muitos anos.
Na terceira, os aspectos formais do cinema são apresentados sob a ótica perfeccionista de Scorsese, especialmente aqueles em que o diretor tem um gosto mais apurado, como também se manisfesta a relação que mantém com seus colaboradores. Assim, há todo um espaço dedicado à montadora Thelma Schoonmaker, ao diretores de fotografia Michael Ballhaus (A cor do dinheiro, A idade da inocência) e Robert Richardson (Cassino, As aventuras de Hugo), e ao músico Bernard Hermann, que compôs a trilha sonora de Taxi driver. A apoteose da exposição acontece numa grande sala, onde são apresentados trechos de filmes em quatro telas simultaneamente. Ao terminar, sentimo-nos quase cúmplices de um cineasta que ama o cinema sobre todas as coisas, ou seja, o sumo sacerdote da Sétima Arte.
O repórter viajou numa parceria com o Centro Cultural Brasil-Alemanha.
Leia a matéria completa na edição deste domingo (10/02) no Caderno C, do Jornal do Commercio.