Além da direção de Flavia Lacerda e da autoria de Newton Moreno e do veterano Guel Arraes, Amorteamo tem oito pernambucanos na equipe. “Pra gente dar essa cama do lugar e da época, queria uma galera do Recife para atingir a cor certa”, diz Flavia, a respeito da série sobre um Recife expressivamente sobrenatural do começo do século 20, onde mortos voltam do além para recuperar amores – e outros elementos – perdidos. São sete atores e uma cantora em cena. Nenhum deles no elenco principal.
É a própria diretora de sotaque recifense quem diz que, no entanto, a escalação não se deu em função de velhos esquematismos do star system brasileiro – aquela velha regra tácita da era Tarcísio & Glória, em que os protagonistas costumam estar reservados para o ator de pele clara, virilidade classe média, supostamente sudestino, que responde sob a alcunha genérica de “galã” e sua versão correspondente feminina.
“Não que o protagonista não pudesse ser pernambucano. Testamos pernambucanos para fazer o papel de Jones, por exemplo. Mas não encontramos. Procuramos vários para os núcleos principais e não achamos”, diz a diretora, responsável direta pela indicação de conterrâneos no elenco.
Se, inicialmente, havia na Globo o projeto de se adaptar o livro Assombrações do Recife velho, uma compilação de lendas urbanas de Gilberto Freyre, esse projeto ficou na gaveta: “Os direitos do livro estão comprados, mas não há projetos a respeito agora”, ela diz. A dramaturgia original acabou sendo escrita por Guel, Moreno e Claudio Paiva. Os episódios orbitam em torno de dois triângulos amoroso, cada um deles com um vértice sobrenatural.
Sobre o trio Jackson Antunes, Letícia Sabatella e Daniel Oliveira, a diretora diz que “sempre quis trabalhar com eles”. No outro trio, Marina Ruy Barbosa é francamente elogiada por Flavia Lacerda. “A gente queria alguém mais jovem, mas ela é tão boa atriz, estudiosa, madura, que achamos que este seria um ótimo momento para ela sair do papel de mocinha”. Os outros protagonistas desse trio, Ariane Botelho e Johnny Massaro, ganharam os papeis através de testes.
Um dos atores de frente do consistente grupo Os Fofos Encenam, capitaneado pelo diretor e dramaturgo Newton Moreno na capital paulista, Paulo de Pontes achou que a série em produção seria, de fato, uma adaptação de Assombrações – ele foi um dos atores de maior brilhantismo no magnetizante espetáculo sobre o livro de Gilberto Freyre, desenvolvido por Moreno.
“Quando soube que estava fechando o elenco principal, eu fiquei louco, passei uma mensagem para Flavia e disse que precisava muito fazer”, diz ele, que já havia trabalhado com ela, no Recife, como colega de elenco na peça Romeu e Julieta, versão de Ariano Suassuna para um folheto de cordel. “Ela e Guel acabaram me chamando para fazer uma participação como o delegado que prende o personagem do Jackson Antunes”, diz.
Com inspiração deliberada no expressionismo alemão para o melodrama de óbvios vários tons acima, a série teve a atriz pernambucana Lívia Falcão – que faz também uma participação como uma prostituta – como preparadora de elenco para uniformizar sotaques e prosódia. “O elenco tem pernambucanos, cariocas, curitibanos... A ideia era que eu conseguisse de alguma forma dar uma equalizada, até porque Flavia não queria um sotaque do interior, mas do Recife”, diz ela, que colocou todo o elenco para assistir a filmes como Tatuagem e O som ao redor, para que um certo naturalismo recifense fosse apropriado.
“Se fosse só o sotaque, não iria funcionar. Foi preciso entender como nós nos movemos de maneira mais ampla”, diz a atriz, com experiência acumulada em novelas. “Embora discretamente, a TV vem abrindo mais espaço para a diversidade cultural brasileira.”
Diretora que tem feito trabalhos diferentes da cartilha mais usual, Flavia concorda: “Sim, a TV passa por uma travessia. Mas estamos descobrindo as mudanças no caminho”.
A CRIADA - Talhada no teatro e com participações em humorísticos da Globo, Gheuza Sena é uma das intérpretes pernambucanas de maior presença na trama. Aparecerá em todos os capítulos de Amorteamo como a empregada da casa de um dos núcleos – moldando o comportamento dos patrões, dando pitaco nos destinos, algo como o coro fazia na tragédia grega.
Atriz negra de beleza proverbial, ela faz, na trama, a criada. “Já não existia escravidão na época, mas havia ainda esse ranço”, ela diz. “A personagem tem uma dedicação servil, é uma ama de leite do príncipe da casa, o dito herdeiro, trazida de um engenho para a casa-grande para salvar o bebê com o leite que a personagem de Letícia Sabatella não tinha.
Apesar do tom expressionista nas cores, fotografia e figurino, a interpretação é relativamente naturalista. “Só assim, conseguiríamos chegar a uma verdade”, diz Lívia Falcão.
Como preparadora, ela modulou também o elenco pernambucano, para “dar uniformidade”. “Trabalhei com cada ator para que ele chegasse a cor da voz do personagem”, diz ela, que avançou também na música.
Além da trilha sonora com direção de Juliano Hollanda, fez o elenco ouvir a música pernambucana mais tradicional e recente. “Achava que eles tinham que ouvir a batida de um cavalo marinho”, diz ela, que acredita que o sucesso da música e do cinema de Pernambuco ajuda a atores a cavar novos espaços na TV.
Destaca-se também o fato de a minissérie contar com uma trilha sonora feita quase que especialmente para ela. O convite surgiu após João Falcão receber de Geraldo Maia o álbum de estreia solo do pernambucano Juliano Holanda, A arte de ser invisível. Além dele, a pernambucana Isadora Melo – parceira em alguns de seus projetos – interpreta as canções. Assim como os atores da série Letícia Sabatella, Jackson Antunes e Daniel de Oliveira.