O escritor Milton Hatoum é um artista generoso, pois sabe que cada adaptação de uma obra sua para outro meio de comunicação, como teatro ou cinema, tem uma vida própria e nem sempre carrega todas as características do original. Assim, aceita de bom grado mesmo que, intimamente, não se sinta tão próximo daquele trabalho. Foi justamente esse sentimento que foi desarmado quando Hatoum assistiu a uns poucos episódios de Dois Irmãos, minissérie de dez episódios baseada em um de seus grandes livros, que estreia na Globo em 9 de janeiro.
"O que vi primeiro foi um copião de um episódio - foi pouco, mas me tocou muito. Não parecia um produto de televisão, mas de cinema", comentou Hatoum. Não se trata de um mero elogio - autor de uma obra contemporânea de excepcional qualidade, o escritor trata a escrita com adequado respeito, a ponto de manter longos períodos entre a publicação de cada livro.
E idêntico cuidado ele observou no trabalho de Luiz Fernando Carvalho, diretor artístico da minissérie, cujo roteiro foi escrito por Maria Camargo. Esteta da imagem, Carvalho é um criador de obras fechadas, ou seja, não têm estreita relação com a antecessora, tampouco terão com a seguinte. Orbitam independentes, graças à sua simples complexidade. Trabalhos que são sempre sobre a necessidade humana de colocar ordem no caos - dar sentido a um universo irracional por meio da religião, política e música e arte.
"Luiz Fernando tem profundo respeito pela narrativa", continua Hatoum. "A palavra, muitas vezes, rende-se ao cinema, que nem sempre encontra a melhor forma de expressá-la. Mas Luiz Fernando sempre explorou a palavra de forma inventiva. Quem gosta do romance não deverá se decepcionar".
De fato, não se trata de um desafio qualquer - publicado em 2000, Dois Irmãos é um dos mais elogiados romances de Milton Hatoum e acompanha o conflito entre os gêmeos Omar e Yaqub, descendentes de libaneses que vivem na Manaus da primeira metade do século passado. Filhos de Halim e Zana, eles enfrentaram uma grave discordância ainda meninos, divididos pelo interesse por Livia, o que provocou uma cisão familiar.
CAIM E ABEL
Omar e Yaqub também são suspeitos de um deles ser o pai de Nael, filho de Domingas, a índia que é a empregada da casa. É sob o ponto de vista de Nael que a trama é narrada, história que, graças ao talento de Hatoum, vai além da semelhança bíblica entre Caim e Abel para, sob os ecos da floresta, tratar de ancestrais indígenas, da brutalidade da colonização, das vivências dos avós imigrantes e dos conflitos provocados pela passagem do rural para o urbano.
Em suas declarações sobre o romance, Carvalho definiu Dois Irmãos como um épico familiar, um álbum de família que espelha a própria história do Brasil, suas alegrias e seus retrocessos. "É uma obra com camadas sociológicas, antropológicas e históricas, tudo isso rebatido na mesa de jantar de uma família de imigrantes libaneses, no odor dos quartos, na sensualidade de uma mãe, no afeto desmedido por um de seus filhos, nos ciúmes dos outros membros da família e nas perdas que o tempo nos revela. É um Brasil em formação, composto pelos sonhos, mas também pela força de trabalho dos imigrantes", disse ele, em declaração já publicada pela imprensa.
Como faz em todos seus trabalhos, o diretor apoderou-se completamente do romance, desfiando todos os nós que encontrava, abrindo portas imaginárias, invadindo o universo interior de cada personagem. "Admiro muito tal obsessão pela obra", observa Hatoum.
"Luiz desenvolve os arquétipos do romance, sua psicanálise, e ainda desvenda a cidade de Manaus. E faz isso de forma coletiva: quando ele me convidou para falar sobre o livro para a equipe, eu me deparei com quase cem pessoas, entre técnicos e atores. Todos trabalhando na mesma frequência, cercando todos os lados da trama", afirma.
Dois Irmãos foi adaptado para o teatro em 2008, em uma montagem dirigida por Roberto Lage, e também inspirou uma caprichada adaptação para os quadrinhos, realizada pelos irmãos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá. Em 2015, Luiz Fernando Carvalho começou a trabalhar na versão para a televisão e, quando iniciava o processo de montagem, precisou interromper pois assumiu o comando de Velho Chico, novela das 21h cuja estreia foi antecipada pela Globo. Encerrado o folhetim, que já se tornou um dos mais impressionantes trabalhos plásticos para a TV, o diretor retomou a finalização da minissérie.
"Ele recusa o naturalismo, mas inclui um tipo de observação sem qualquer anseio racionalista", conta Hatoum que, quando assistiu às primeiras imagens da série, pediu diversas vezes ao montador que congelasse determinadas imagens, que se assemelhavam a pinturas, graças ao preciosismo do encenador, que se espalha pela cenografia, figurinos e trilha sonora. "A imaginação de Luiz Fernando corre solta, é produtiva, o que naturalmente leva à ousadia e o que torna o trabalho ainda mais interessante".
"É o papel da minha vida", afirmou o ator Cauã Reymond, durante a Comic Con Experience 2016, que terminou neste domingo (4/11), em São Paulo. Ele, que vive os gêmeos Omar e Yaqub, lembrou que sonhava em participar de uma adaptação do romance desde que ganhou um exemplar de sua mãe, quando ainda iniciava a carreira na TV, em Malhação, em 2002. "Quando li a história, descobri que queria interpretar os dois irmãos".
A estreia da minissérie vai marcar o início do projeto Assista a Esse Livro, que resgata a relação da teledramaturgia da Globo com a literatura brasileira. Entre os dias 6 e 9 de dezembro, no Rio, haverá exposição de fotos e figurinos de grandes clássicos adaptados, debate sobre a relação entre a escrita e a TV, um debate sobre a história do figurino e uma nova edição do Caderno Globo sobre o tema. O projeto também vai viabilizar o relançamento de títulos adaptados para a TV em formato de e-book com cenas conectadas.