Cena clássica de filmes de terror: mocinha (geralmente loira) vaga sozinha por um canto inóspito, sozinha e indefesa. Perseguida pelo vilão, é morta, sem chances de defesa. Agora imagine isso: uma mulher vaga por um canto inóspito sozinha. Perseguida por um vilão, se defende – e mais, elimina a ameaça, salvando a si e à humanidade no caminho. Foi pensando nessa inversão do imaginário ligado ao feminino que Joss Whedon criou uma das personagens mais icônicas da cultura popular: Buffy Summers. A série sobre a caça-vampiros estreou há 20 anos e se tornou um marco da representação feminina nas telas.
Na mitologia desenvolvida por Whedon (hoje um dos principais nomes de Hollywood, à frente de blockbusters como Vingadores), a cada geração, uma garota é escolhida para defender o mundo de vampiros e outros demônios. A “slayer”, como é conhecida esta jovem, é escolhida após a morte de sua anterior, de forma aleatória, ou melhor, pelo destino. Buffy, interpretada com maestria por Sarah Michelle Guellar, era uma jovem de apenas 16 anos quando recebeu seu chamado e a série acompanha sua trajetória de aceitação de seu destino ao longo de sete temporadas.
Nas primeiras temporadas, vê-se uma garota impetuosa, vivendo os dramas da adolescência e balanceando o peso de matar vampiros à noite e estudar geometria pela manhã. Popular em sua escola anterior, ela chega à pequena Sunnydale (a boca do inferno) como uma pária, logo acolhida pelos igualmente excluídos Willow (Alyson Hanningan) e Xander (Nicholas Brendon). Seu tutor, Giles (Anthony Head), é responsável por ensiná-la sobre seu chamado, ao mesmo tempo em que representa a figura masculina que Buffy não tem.
Um dos aspectos mais fascinantes da série é a forma como os temas são tratados. Ainda que se passe em um ambiente de high school e seja marcado por (ótimas) tiradas cômicas, Buffy é uma obra que tem no seu cerne a questão do amadurecimento. Principalmente nas primeiras temporadas, cada demônio representa um desafio psicológico (a escola e as experiências às quais os alunos são submetidos funcionam como grandes metáforas da adolescência) que os personagens precisam enfrentar para se desenvolver enquanto indivíduos. Com o tempo e a posterior sofisticação da narrativa, essas transformações e os temas, como luto, sexualidade, traumas, vão se tornando mais sutis e maduros, como os protagonistas. E é fundamental a profundidade dada por Whedon e seus colaboradores para suas criações.
Buffy, que inicia como uma menina à flor da idade, com sonhos e projeções, é confrontada com seu destino: defender o mundo e ter a morte como única certeza. Não lhe é reservado poder de escolha: ela é a escolhida. Os traumas adquiridos com a perda do amor, com as rupturas das relações e a complexidade da amizade ressoam na protagonista gradativamente. Esta representação da mulher enquanto heroína, altiva, vulnerável, enfim, complexa, é um dos maiores trunfos da obra.
Sobre a personagem, Sarah Michelle Guellar afirmou: “Como ator, você deseja ter aquele papel único em que possa deixar sua marca e ser lembrado, com Buffy eu tive muito mais. Ela é uma contestação feminista à hierarquia de gênero”.
O seriado é, também, um exemplo de ótima televisão. Com algumas exceções, há ali um domínio da narrativa, com ritmo ágil, tiradas marcadas por referências à cultura pop e um desejo infindável pela experimentação. Alguns episódios são particularmente emblemáticos por sua ousadia, como Hush, da quarta temporada, praticamente sem diálogos, ou o episódio musical Once More With Feeling, da sexta temporada. Balanceando horror, comédia, drama e ação, é multifacetada e, por isso, continua a impactar.
FEMINISMO
Em uma época no qual a representatividade feminina em papeis de heroínas era praticamente inexistente, Buffy surgiu como uma revolução, trilhando o caminho para o sucesso, hoje, de uma Jessica Jones. Ao mostrar que aquela personagem e história eram viáveis (a série foi um sucesso), Whedon mostrou que Buffy era não só uma heroína possível, mas também necessária.
Como uma grande metonímia do sagrado feminino, a caça-vampiros enfrentava, a cada noite, a ameaça de um mundo misógino, no qual ser mulher, existir e resistir, por si só, é um ato de coragem. A intenção do roteirista era criar uma narrativa empoderadora para as mulheres. Em uma entrevista, afirmou que sua primeira missão celebrar o poder feminino. “Tê-lo, usá-lo, dividi-lo”, afirmou. E Buffy, o fez. Como já disse a slayer: se o apocalipse chegar, pode “bipá-la”.