Um rápido exercício sociológico pode ser feito na ferramenta de imagens do Google. Ainda que de maneira – perigosamente – superficial, a associação de nomes a imagens traçada pelo site nos traz um panorama geral de como uma nação é percebida por olhos estrangeiros. A busca pelo termo “Brazilian people”, por exemplo, traz à tela uma uma profusão de rostos sorridentes – alguns na praia, outros em ambientes de aparência humilde, todos sorrindo. Trocando por “Brazilian girls”, as opções se restringem a mulheres que exalam uma sensualidade cor de bronze em biquínis diminutos. Em algumas centenas de fotos, eis o resumo visual do “Brazil”.
Buscas virtuais à parte, a essência destas imagens habitam o imaginário gringo sobre o País desde o início de sua formação. Parte relevante da produção cultural brasileira – consequentemente exportada como cartão de visitas dos trópicos – reitera a representação de um País virtuoso, repleto de confete, cordialidade e mulatas exuberantes. Jorge Amado, na posição de um dos escritores brasileiros mais lidos do mundo, foi um dos perpetuadores recentes desta versão compactada de Brasil/Bahia. Da brejeira e sensual Gabriela ao malandro Vadinho, o baiano materializou personagens memoráveis que levam consigo, aonde quer que sejam lidos, o Brasil visto aos olhos de seu criador
É da Bahia que Jorge nos apresenta seu fascínio quase lusitano pelo mar, assim como o cotidiano, as festas, a comida, a capoeira e os cultos africanos do estado. O universo gingado que o escritor traz é regido, sobretudo, pela mestiçagem, alegria e tolerância, acentuando-se, além dos cinco sentidos e dos prazeres sensuais, a riqueza da cultura popular brasileira – como o artesanato, a culinária e as trovas populares.
“O escritor seleciona aspectos do que vê e vive para construir uma representação que, posteriormente, pode se tornar consenso e se ‘materializar’, fazendo com que se vejam as coisas à sua imagem e semelhança”, observa a antropóloga Ilana Goldstein, autora livro O Brasil best-seller de Jorge Amado. “Por esta razão, uma das questões recorrentes dos estudiosos do escritor é: ‘Jorge Amado criou a Bahia ou a Bahia criou Jorge Amado?’”.
Em suas obras, Jorge Amado tende a transformar a diversidade em um estereótipo, sobretudo nas personagens femininas
A antropóloga situa esta inclinação regional do baiano no contexto da geração modernista de 1930, momento em que surgiram importantes obras para se compreender o País e pensá-lo adiante, como Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda) e Casa-grande e senzala (Gilberto Freyre). “É neste período em que se recuperam, dentro da cultura popular e mestiça, elementos que destacavam uma identidade brasileira”, lembra Ilana, apontando para o candomblé, o samba e o futebol, que nesta época perdeu o título de “esportes das elites” para ser acompanhado por todas as camadas sociais.
Como a estudiosa indica, Jorge Amado trouxe, em sua vida e obra, o preceito defendido por Gilberto Freyre de que a miscigenação aqui praticada corrigiu a distância social que, de outra maneira, teria se conservado enorme. Além de colorir alguns de seus personagens com uma certa habilidade conciliatória – a tal flexibilidade do “jeitinho brasileiro” –, Jorge Amado fazia de si mesmo um exemplo da cordialidade tropical ao transitar com igual fluência entre as camadas populares e a elite. O autor de Gabriela, cravo e canela nutria uma relação muito próxima com seus admiradores e outros artistas – como o ilustrador baiano Carybé –, e criou sua imagem pública aos moldes de um de seus heróis malandros. O baiano típico para o escritor, encarnado por ele mesmo, é descrito no romance Bahia de todos os santos (1945): “Sempre que penso no mulato baiano vejo um homem gordo. Gordo não apenas fisicamente. Como caráter também: bom, amável, glutão, sensual, agudo de inteligência, bem falante, mas de fala mansa, sabendo tratar tão bem os inferiores quanto os superiores. Comendo comida gordurosa, cheia de azeite, mas apimentada também”.
"BRASILEIRAS"
O enfeite de rosa vermelha nos cabelos mais o cheiro de cravo e perfume de canela não enganam: Gabriela, personagem encarnada na televisão por Sônia Braga e, agora, por Juliana Paes, é a síntese da sensualidade e brejeirice atribuídas às mulatas brasileiras. Gabriela, “de corpo esguio, rosto sorridente, mordendo uma goiaba”, é apresentada por seu criador como uma espécie de “mulher-fruto”, imbatível na cozinha e na cama.
“Em suas obras, Jorge Amado tende a transformar a diversidade em um estereótipo, sobretudo nas personagens femininas. A mulher brasileira, representada pela mulata, é reduzida a um arquétipo, fácil de ser assimilado por outras culturas”, reflete Lourival Holanda, professor de letras da UFPE. “Em romances como Gabriela..., apesar de haver personagens femininas fortes e decididas – até mais do que os homens –, não há reinvidicação do discurso feminino”, explica.
A representação exótica que se tem da mulata ronda o imaginário coletivo desde a época em que o Brasil foi colônia portuguesa. Em Casa-grande e senzala, um dos provérbios evocados por Gilberto Freyre traduz esse sentimento: “A negra no fogão, a mulata na cama e a branca no altar”. Os homens brancos, para preservar a castidade das mulheres livres e sem apelar ao encanto das escravas, não resistiam às mulatas, união das características já familiares da mulher europeia com a suposta “lascívia” do sangue negro. Assim, para se ausentar de culpa, o novo habitante do País vai justificar suas pulsões extraconjugais através da “imoralidade e irresistível atrativo das mulheres de cor”. Ligando extremos como o Brasil Colônia e as imagens do Google, conseguimos ver as inúmeras conexões que podem ser feitas dentro do amplo universo de Jorge Amado.