ENTREVISTA

Valter Hugo Mãe: "Os meus livros reconhecem o terror, mas sonham"

Primeira atração confirmada para a Fliporto deste ano, o escritor português fala sobre o seu novo romance e a relação com o Brasil

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 01/05/2013 às 5:40
Joana Sousa/Divulgação
Primeira atração confirmada para a Fliporto deste ano, o escritor português fala sobre o seu novo romance e a relação com o Brasil - FOTO: Joana Sousa/Divulgação
Leitura:

Em O apocalipse dos trabalhadores, o amor é "a inteligência mais secreta de todas", justamente o que é negado às personagens das empregadas domésticas. Na entrevista abaixo, o escritor Valter Hugo Mãe, presença confirmada na Fliporto de 2013, fala sobre a escolha de escrever sobre a dura vida dos trabalhadores portugueses e sobre como insere esperança e beleza em meio a narrativas quase trágicas.

JC - O apocalipse dos trabalhadores se constrói a partir da dureza da vida de alguns operários urbanos portugueses. Como surgiu a ideia de trazer essa rotina para a ficção?
VALTER HUGO MÃE –
Quis muito escrever sobre a súbita vinda dos ucranianos para Portugal. Impressionou-me a quantidade de homens e mulheres que vieram fazer os serviços que os portugueses, tão deslumbrados com a Europa, já não queriam fazer. Quis pensar sobre o que significa o trabalho e a sua obrigação inata. Quis pensar, pelo exemplo dos ucranianos, o que poderá ter significado a fuga dos portugueses durante os anos 1960, no tempo da ditadura.

JC - O romance é lançado aqui depois de O filho de mil homens que, apesar de momentos fortes, desperta esperança no leitor. Você se sente um escritor esperançoso ou apocalíptico?
HUGO MÃE –
Eu vejo o mundo como feito de terror, depois, tenho muitos sonhos em mim. Os meus livros reconhecem o terror, mas sonham. Esperam sempre melhor.

JC – É também um de seus livros com mais momentos engraçados e irônicos. Como surgiu esse tom? Foi algo que nasceu com os personagens da obra?
HUGO MÃE –
Sim. Foi uma natureza das personagens. Posso confessar que quase apaguei todas as passagens com humor por desconfiar da possibilidade de a literatura ser divertida. Estava tão habituado a uma aproximação mais agressiva que aquele tom me surpreendeu e confundiu. Entretanto, aceitei, apaziguei-me com o humor do livro e creio ter valido muito a pena ter arriscado.

JC – O livro sai aqui em um momento em que finalmente se garantem direitos trabalhistas para as domésticas no Brasil, apesar dos protestos conservadores dos estratos altos da sociedade. A sociedade e o estado português tratam com dignidade a atividade? A sua escolha por essas personagens se dá por isso?
HUGO MÃE –
Em Portugal, a empregada de limpeza raramente está dignificada. Normalmente trabalham abaixo da legalidade, fora de todo o controle. Nenhum país pode evoluir sem respeitar os direitos de todos os trabalhadores. As pessoas dos serviços domésticos terão necessariamente de ser abrangidas pelo cuidado da lei. Não podem ser como escravos ou animais domésticos particularmente talentosos.

JC – Você vem para Fliporto neste ano, mais uma presença em festivais literários no Brasil. A sua relação com o nosso País se intensificou depois daquela memorável mesa na Flip de 2011?
HUGO MÃE –
Espero que se justifique pelos livros. Começou com um acaso muito feliz na Flip, mas quero muito acreditar que o entusiasmo do público brasileiro hoje se coloque devido à leitura entretanto feita do que escrevo. Fico muito honrado com o respeito que o Brasil me tem. Muito honrado e grato.

Leia o começo do livro:

de noite, a maria da graça sonhava que às portas do céu se vendiam souvenirs da vida na terra, gente de palavras garridas que chamava a sua atenção com os braços no ar, como quem tinha peixe fresco, juntava-se em redor da sua alma e despachava por bagatelas as coisas mais passíveis de suprir uma grande falta aos que morriam. os últimos charlatães, pensava ela, envergonhada até por ter de pensar depois de morta, ou que talvez fosse coisa boa antes de se entrar o céu ser dada a oportunidade de levar um objeto, uma imagem materializada, algo como prova de uma vida anterior ou extrema saudade. ela pedia-lhes que a deixassem passar, ia à pressa, insistia, sabia mal o que fazer e não podia decidir nada sobre nada. seguia perplexa e não querendo arriscar a ganância de se depositar na eternidade a partir de um ato de posse. por uma compreensível angústia, ansiedade ou frenesi de ali estar tão pela primeira vez, mantinha a esperança de que talvez são pedro a esclarecesse e, com um pé lá dentro e outro ainda fora, lhe fosse possível comprar o requiem de mozart, a reprodução dos afrescos de goya ou a edição francesa das raparigas em flor.

 

Leia a entrevista completa no Jornal do Commercio desta quarta (1º/5).

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