Qualquer comentário crítico pode parecer desnecessário quando o leitor é capaz de facilmente identificar que um livro foi feito, antes de tudo, por uma necessidade, não por uma vontade. É como se houvesse o conceito de um romance culposo – em casos extremos, de um romance de legítima defesa –, que é feito ativamente por alguém que só pode responder pelos seus atos com algumas ressalvas. Divórcio, obra do escritor paulista Ricardo Lísias, se encaixa bem no conceito: é um livro sobre a “ficcionalização” da vida, porque ela se impôs como único tema possível.
A autoficção – ainda que Lísias não goste do termo – não é uma novidade na carreira do autor. O céu dos suicidas, seu excelente romance anterior, trazia para o ambiente da ficção o seu nome e uma experiência concreta: o suicídio do seu amigo André. Se a narrativa anterior pode se encaixar nesses termos, então é preciso achar outro termo para Divórcio: a realidade – melhor, a aparência de realidade, porque Lísias deixa claro que a literatura não deve conter nenhuma relação com o “real”, porque é incapaz de representá-lo – é a carne do romance e, mais do que um empréstimo de elementos da biografia para o enredo, parece acontecer o contrário. É a ficção que fornece dados para a vida de Lísias, a ponto de, em vários momentos do livro, ele repetir: “Estou, de fato, dentro de um texto que escrevi”. O trabalho revela o Lísias ficcional que o escritor quis criar para se confundir consigo mesmo.
É fácil começar a explicar por que Divórcio é um romance voraz, forte e, em mais de um sentido, cruel. O enredo revela bem isso: Lísias, aqui personagem, descobre, por acaso, o diário da sua mulher em uma gaveta, com confissões de frustrações e traições. “Casei com um homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado dentro de um quarto lendo a vida toda”. Essa é a frase que lhe arrancou a pele, ele diz. O personagem, então, faz uma cópia do diário e sai de casa. Enquanto isso, seu corpo fica em carne viva.
O livro recupera o período logo após a descoberta do diário, em que o Ricardo-narrador tenta recuperar a dor que sentiu com o impacto do fim do casamento. A separação é brusca, com notificações judiciais, fofocas no meio jornalístico – Lísias transcreve um trecho do diário em que a esposa se diz “a maior jornalista de cultura do Brasil” –, acusações de chantagem, entre outras crueldades frequentes dos dois lados. Ricardo, no livro, está sem pele, mas são as palavras que o despem de fato.
Divórcio é um livro com alguns excessos. Lísias não discordaria dessa afirmação: a parte final do livro, além de conter uma revelação da importância de ter escrito tudo aquilo e de passar com a literatura pelo sofrimento, é uma explanação de alguns dos estranhamentos da obra. A variação do tom da voz, a crítica a um panorama geral da sociedade e do meio cultural (com mais morbidez em relação ao jornalismo), a inserção de histórias descontinuadas, tudo é explicado ali, como uma defesa dos problemas que não conseguiu (ou não quis) tirar do romance.
O que talvez relativize os problemas de Divórcio é que não é um livro que Lísias quis escrever. É uma obra que ele, antes de tudo, parece ter precisado criar, ao passar várias vezes pela dor latejante da narrativa para poder sobreviver – e o impacto desse sofrimento está presente no livro de forma magistral, é preciso dizer. A obra é cheia de caminhos falsos e becos sem saída, de excessos e rancores, de generalizações e injustiças, mas que dor é coerente e justa? “O pior de uma dor como essa é a impossibilidade de fazer um plano”, escreve em uma das páginas. O divórcio de Lísias, no livro, é a separação nada amigável entre o autor e os seus próprios erros pessoais. Ele se divorciou, ainda que com um preço alto, da própria dor.
Leia o texto completo no Jornal do Commercio desta segunda (16/9)