O cineasta português Vasco Aspades é pouco conhecido no Brasil, infelizmente, apesar de ser dono de uma das obras mais provocativas da sétima arte europeia. Para conhecer o diretor – um diretor ficcional, precisa-se ressaltar –, é preciso ir atrás do hoje raro livro Aspades ETs etc., do escritor e cineasta Fernando Monteiro, lançado em 1997. A obra, fortuitamente, nos dá mais uma chance de ser lida, com sua reedição, em formato digital, pela Cesárea Editora. O e-book está disponível para ser comprado a partir desta terã (29/4), por R$ 6,50, no site www.cesarea.com.br.
Aspades ETs etc. é uma espécie de romance, apesar de ser feito de cinco narrativas independentes. A primeira, Postenebras, é justamente a que nos apresenta um perfil ensaístico desse cineasta imaginado, mas com uma personalidade e uma obra tão palpável que é difícil de acreditar que ele realmente não existe. Fernando Monteiro faz um exercício crítico e ficcional ao mesmo tempo, fazendo da narrativa uma bela homenagem ao cinema (que fazia cem anos de história nos anos 1990) e uma celebração da sua relação com a escrita – ambas sempre se distorcem e se completam, ao mesmo tempo.
Essa irmandade entre narrativa e pensamento sobre a arte se tornou, nos tempos atuais, cada vez mais comum – o catalão Enrique Vila-Matas costuma fazer o mesmo, consagrando-se com a transformação de escritores reais em personagens. Fernando, no entanto, dá sua própria forma a esse perfil-ensaio de Vasco Aspades, em grande parte através dos seus parágrafos longos, repletos de uma ironia fina, que compara, por exemplo, o cinema fictício aos nossos realizadores reais. A sua prosa é intencionalmente cheia de lacunas, algo que se pode ver também no recente O livro de Corintia, lançado neste ano. Fernando sabe criar buracos no espaço-tempo da sua própria ficção, alheio ao realismo e a perfeição de tramas de “ação”.
O livro recebeu elogios já na época, tanto em Portugal como na revista Bravo!, e foi publicado pela Record, três anos depois. Nas narrativas seguintes, personagens ausentes, como Aspades, novamente aparecem, seja através da procura por ETs, seja na despedida sem adeus da garota com que se dormiu na noite passada, seja nos viajantes perdidos sem rastros no Malawi. A reedição revela a atualidade da prosa de Fernando, um pernambucano que aquela altura já era um pouco estrangeiro – é preciso ser um intruso, de alguma forma, para arriscar-se na literatura.
“FICCIONAL SOU EU”
Como diretor e escritor, Fernando se sentiu desafiado, em 1995, a pensar em como a sétima arte modificou a escrita – coisa que, então, não estava sendo suficientemente pensada no fazer literário. “Ou seja, uma arte que reinventou o olhar, digamos assim (ao menos indiretamente), e que havia reciclado a maneira literária de ver, merecia ser objeto de uma narrativa em que ela fosse sujeito e objeto, e mais: na qual estivesse refletida como num espelho alucinantemente real, etc”, comenta Fernando. “Daí, a ideia da criação de uma biografia e de uma cinematografia imaginárias, que resultou em Postenebras pós a luz do facho de projeção de uma ‘ilusão de óptica’ – diria Vasco Aspades do Carmo – que hoje carrega o nome desse cineasta em cuja existência real eu mesmo passei a acreditar (creia!). Ficcional sou eu”.
O livro, de fato, tem uma das mais belas apropriações do cinema por parte da escrita: a descrição e avaliação dos filmes de Vasco Aspades é uma vingança, de alguma forma, da literatura, que rouba dessas películas ficcionais parte da sua poética. Fernando conta que, para criar essa sensação de que Aspades existia e que, ao mesmo tempo, não podia ser visto por completo (nada pode ser olhado totalmente na prosa de Fernando), foi preciso usar dois mecanismos. “Nesse livro, eu trabalhei com dois elementos para mim essenciais: o simulacro e a lacuna. O primeiro é responsável pela ‘real alucinante’ e o segundo fica a cargo do leitor completar, tornando a máquina de narrar interativa com a imaginação do leitor”, analisa.
Segundo ele, Aspades ETs etc. nasceu do impasse da literatura brasileira da década de 1990 – dela, Fernando só salva Caio Fernando Abreu e João Antonio. O panorama não mudou muito, de fato, para o autor: vive-se um “conservadorismo narrativo”, por pressão do mercado, pela volta do realismo trivial. “Querem que a literatura volte a marcar a hora da saída de casa da marquesa atrasada: cinco horas da tarde...”, comenta Fernando.
Não se estranha, então, que o autor se veja sem muito interlocutores literários, na sua opinião. “Aspades ETs etc. permanece solitário, eu acho, em monólogo com o que a literatura deveria ser: a capacidade de criar significação – e não reiterar o que o leitor atual pretende encontrar nos livros que ele lê talvez para confirmar o que (já) pensa que sabe sobre a realidade sem portas da imaginação (até porque literatura não é autoficção, etc.)”, opina. Fernando, metade escritor, metade Aspades, está em busca de mais do que pequenas histórias: quer criar suas incógnitas, ainda agora.
Confira texto do editor da Cesárea, Schneider Carpeggiani, sobre Aspades ETs etc.
Leia mais no Jornal do Commercio desta terça (29/4).