O escritor e jornalista colombiano Gabriel García Márquez dirigia com sua família rumo à praia de Acapulco, em 1965, para relaxar. Estava há vários dias sem conseguir descobrir o ponto de partida do romance que buscava escrever desde 1948, chamado provisoriamente de A casa. No carro, ele se depara de súbito com o início que tanto esperava para a narrativa: um homem diante de um paredão de fuzilamento, que recorda o dia em que seu pai o levou para conhecer o gelo.
Esse é o começo da biografia em quadrinhos Gabo, memórias de uma vida mágica, feita por cinco autores colombianos, que foi publicada agora pela editora Veneta. Qualquer leitor de Cem anos de solidão reconhece a cena que apareceu na mente de García Márquez naquele momento: é o ponto de partida da obra-prima do autor. O quadrinho, publicado na Colômbia em 2013, com roteiro do escritor Oscar Pantoja, já estava agendado para sair por aqui, e a morte de Gabo, em abril deste ano, só aumentou a importância do lançamento. Para desenhar a história, Pantoja contou com quatro colaboradores (Miguel Bustos, Felipe Camargo, Tatiana Córdoba e Julián Naranjo), cada um responsável por uma parte da HQ.
Gabo, memórias de uma vida mágica é divido em quatro partes, cada uma com traço e espectro de cores específico, ainda que com uma bonita harmonia no conjunto. O livro não se foca em repassar em detalhes a vida do Nobel colombiano; na verdade, gira em torno da criação de Cem anos da solidão e do imaginário do realismo mágico do autor. Claro que isso significa, no entanto, voltar em parte para a sua história familiar, infância, vida profissional, viagens e leituras.
O início traz essa fagulha inaugural para o romance, mas Pantoja vai buscar as origens de Macondo e dos Buendías bem antes. As fontes para a história são diversas, de entrevistas do próprio Gabo a outras biografias e ensaios feitos sobre sua obra. Viver para contar, memórias escritas pelo próprio García Márquez em 2002, é uma base fundamental. Por ser afetivo e confessional, ao mesmo tempo, se torna, junto com a literatura do colombiano, a principal fonte para compor os sentimentos e pensamentos do biografado.
O quadrinho se destaca pela mais capacidade de ser sintético do que pela precisão ou por saber dar conta de todos os aspectos da vida pública e privada de Gabo. A história do avô dele, Nicolás Márquez, uma das inspirações para a obra-prima, é contada, desde sua participação na guerra civil colombiana até os ensinamentos ao neto (García Márquez morou com ele, longe dos seus pais, até os nove anos). Em um dos momentos, ele apresenta um dicionário ao futuro escritor, o único livro que sabe todas as palavras e não se equivoca.
A vida profissional e os círculos literários também mostram a evolução de García Márquez até se tornar um autor mundialmente conhecido. Ao contrário dos desejos do pai, ele não conclui o curso de medicina e passou desde cedo a criar contos. Como jornalista, passou por vários países como correspondente e colecionou boa parte das amizades que manteria até o final da vida. A HQ destaca com justiça ainda três momentos de descoberta literária: ao ler Kafka (e notar o estilo de contar histórias da sua avó), ao ler Juan Rulfo e ao mergulhar nas obras de William Faulkner.
Uma das mais belas passagens do livro é a que mostra os dias em que o colombiano mergulhou na escrita de Cem anos de solidão. Com pouco dinheiro, sua esposa, Mercedes, controlou a situação, deixando Gabo mergulhado apenas no seu livro. Quando ele terminou, devia tanto a companheira quanto ao próprio esforço o mérito de conseguir concluir a narrativa.
Um dos poréns do trabalho é o pouco destaque à atuação política de Gabo – sua passagem por Cuba e amizade com Fidel são citadas, mas de forma passageira. Também episódios polêmicos, como a briga com Mario Vargas Llosa, não são nem mencionados. A rica vida do autor e os diversos países em que morou são apenas detalhes. A opção em Gabo, memórias de uma vida mágica é por uma história afetiva e concisa – justamente por isso, funciona apenas como uma boa introdução a uma vida fantástica. Seu universo, literário e pessoal, tem muito a ser descoberto também em outras obras, principalmente as suas.