POESIA

Os 130 anos de Manuel Bandeira e seu inventário do Recife

Um dos gurus do modernismo, o poeta pernambucano recriou através da memória a cidade onde passou a infância

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 19/04/2016 às 5:21
Miguel Falcão
Um dos gurus do modernismo, o poeta pernambucano recriou através da memória a cidade onde passou a infância - FOTO: Miguel Falcão
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Os “versos de um transplantado”. Era assim que Manuel Bandeira sintetizava a busca de um dos seus mais famosos poemas, Evocação do Recife – espécie de prova de sua origem que ele usaria sempre que o acusassem de ser um poeta carioca. Ali estava a garantia que Bandeira era um transplantado longe do seu Recife sem história nem literatura, do seu Recife sem mais nada, do seu Recife morto, que tinha visto até os dez anos de idade. Deixou inalterada, então, a imagem da capital que, quase trinta anos depois, já estava transformada pelas reformas “modernizantes” (e que, depois, seria transformada e transfigurada sucessivas vezes, quase nunca com critérios razoáveis).

De longe, Bandeira conseguiu criar um retrato – subjetivo e, talvez por isso, ainda mais belo – do Recife, em uma imagem que continua existindo hoje, 130 anos depois do nascimento do poeta. Suas lembranças falavam de uma cidade que já havia ficado no passado; ao evocá-la, ele garantiu que sua Recife mítica continuasse existindo, ainda que poeticamente, muito tempo depois. Mais do que uma exaltação da capital, da saudade ou da infância, Evocação do Recife é uma amostra da dicção inconfundível do autor, um guru humilde do modernismo que soube unir a busca incessante pela vanguarda dos paulistas e a preocupação com o regional e o tradicional dos autores regionalistas, liderados por seu primo Gilberto Freyre.

A icônica rememoração do Recife foi criada pelo poeta transplantado há mais de 90 anos. O convite – um pedido por versos sobre suas memórias de infância no Recife – veio de Freyre, que parecia adivinhar no autor pernambucano a distância física e o afeto necessários para a empreitada. A carta se perdeu, mas ao lembrar o fato, o sociólogo brincava com a reação do poeta: ele teria estranhado “que alguém lhe encomendasse um poema (...) como quem encomenda um pudim ou sobremesa para uma festa de bodas de ouro”.

Com a provocação na cabeça, o poeta pernambucano fez o texto do seu quarto de pensão na Rua do Curvelo, no Rio de Janeiro, enfermo de lembranças. “Bandeira até então não tinha escrito nenhum verso sobre a cidade que deixara aos 10 anos e que nunca voltara a ver. Evocação do Recife é um poema que fala de uma infância que só existe agora nas memórias do poeta. No entanto, essa matéria fabulatória, quase mítica, precisa transigir com o Bandeira adulto, poeta, para ressurgir e se fazer matéria de poesia. Tempo e espaço, memória e técnica, passado e presente se unem nesse verso de Bandeira e se faz assim um dos seus mais belos poemas”, comenta o pesquisador e professor de Letras na UFPE Anco Márcio Tenório.

No ensaio inédito Evocação do Recife: Passaporte para o Modernismo, escrito em 1987, a professora da UFPE, pesquisadora e poeta Lucila Nogueira destaca que o poema adianta traços da poética de Bandeira, especialmente a proximidade de uma linguagem coloquial e nordestina. Para ela, o autor criou um “poema na linha retrato da cidade como existiu em Baudelaire e Cesário Verde, mas que é para nós um relâmpago divisor de águas da modernidade e a tantos comove até hoje”. Lucila ainda lembra que, por meio de cartas, Mario de Andrade guardou “palavras de inveja” para os poemas que o amigo havia feito no livro Libertinagem: ele negaria que a obra seria de poesia e dirá que é feita alma, e alma só.

Para Anco, é possível dizer que, no poema, Bandeira faz quase uma síntese dos programas dos autores da Semana de 22 e dos autores do Manifesto Regionalista. “Do primeiro, o coloquialismo; do segundo, o olhar expressional sobre o mundo”, ressalta. “Ele evoca passagens da sua infância, sem que essas passagens sigam uma ordem cronológica ou temporal.”

Assim, ao contrário do que José Lins do Rego vai fazer com o seu ciclo da cana-de-açúcar, ele não se interessa por uma memória organizada e coerente. “As memórias de Carlos Melo (de Menino de Engenho) são as memórias do seu imobilismo, da sua incapacidade de agir ante o mundo em que ele se inscreve. Em Bandeira, não, o que temos é um eu lírico, adulto, evocando um passado, lamentando o que a sua cidade se transformou, mas consciente que ele próprio, o poeta, também já não é o mesmo. E o mundo se move e a vida segue”, analisa Anco.

O historiador Felipe Alves Paulo Cavalcanti ainda destaca outra singularidade da memória de Bandeira: ele considera que o saudosismo de Evocação... é menos “reativo” e “restaurador”. O que realmente move o famoso poema, o pesquisador defende, é sensação de melancolia. “O olhar do poeta inclina-se mais para a vida do que poderia ter sido e não foi do que para a vida de fausto dos antepassados que estava se perdendo ou já havia se perdido”, escreve.

Se há uma hábil recriação da memória no poema, há também lembranças fidedignas da infância de Bandeira. O pesquisador e jornalista André Cervinskis, autor do livro Manuel Bandeira, Poeta até o Fim, lembra que os nomes citados no texto, como Totônio Rodrigues e Aninha Viegas, são de pessoas que realmente existiram. “Não é só um poema sobre a infância: é um resgate de como era o Recife naquela época, de como era o falar do povo, da atmosfera familiar e provinciana da cidade”, comenta.

HOMENAGEM - André participou ontem da Semana Manuel Bandeira, no Espaço Pasárgada, que continua até amanhã. Na programação, estão previstas declamações, vídeos especiais da Oficina Da Poesia ao Vídeo, de Eva Jofilsan, e uma sessão de Boi Neon, do diretor Gabriel Mascaro. Amanhã, no encerramento do evento, o destaque é uma leitura do grupo Magiluth da peça Macbeth, de Shakespeare, e um recital com Cida Pedrosa e Silvana Menezes sobre as mulheres na poesia do poeta.

Apesar da homenagem promovida pelo Governo do Estado, André lembra que a casa onde Bandeira nasceu, nas Graças, está para ser vendida, sem nenhuma movimentação do poder público. “É um crime. É mais um exemplo da falta de memória de Pernambuco deixar essa casa virar uma loja ou um café. O Pasárgada tem uma função limitada, eu defendo que a segunda casa vire um espaço cultural, com cursos, palestras e a biblioteca dele”, aponta.

Talvez esse seja mais um retrato da falta de memória do Recife. Bandeira, do Rio de Janeiro, já sabia que não encontraria a mesma Recife aqui. “Tudo parecia impregnado de eternidade”, escreve, como se soubesse que tratores e planos urbanísticos irresponsáveis ainda iriam descaracterizar a cidade por sucessivas gerações. Para Anco, esse é um dos principais traços da modernidade, o de “transformar em fumaça tudo o que parecia impregnado de eternidade”. “Ao destruirmos o nosso repertório arquitetônico (ruas, avenidas, casa) estamos destruindo o nosso próprio repertório de vida. Afinal, sou um ser situado no tempo e no espaço e esse tempo e esse espaço ajudaram e ajudam a moldar o meu espírito. Destruir ou mutilar uma cidade é destruir também a alma e o espírito daqueles que nela nasceram e nela viveram, é acreditar que podemos construir o futuro calçado em pés de barro”, avalia. “Em Bandeira, não é tanto a infância perdida que se lamenta e, sim, a cidade perdida, pois ele tem consciência que toda existência humana é provisória, mas o espírito dessa existência pode continuar sobrevivendo se o mundo que o viu nascer e o cultivou continuar existindo.” O que restou, 130 anos depois do nascimento do poeta, é um Recife que sempre poderá ser evocado de novo, ainda que apenas por versos.

NOVAS EVOCAÇÕES DO RECIFE - Para celebrar do 130 anos de Bandeira e os 90 de Evocação do Recife, completados ano passado, o JC convidou poetas e escritores para fazerem suas próprias versões dos poemas. O escritor Marcelino Freire evocou o Recife que encontra em São Paulo e vice-versa; já o poeta José Juva, morando em Aracaju, falou do seu “Recife, passagem de som e sonho, tropeção”. A poeta Adelaide Ivánova, de Berlim, recorreu a uma fotografia e às impressões da infância; o escritor Wellington de Melo resgatou o seu poema pas rgada, de 2010. Veja abaixo os poemas.

 

Evocação de São Paulo
(por Marcelino Freire)
 
Recife de Piratininga
Das ladeiras e carreiras
Filas e estacionamentos
Dos carros em parafuso
Dos viadutos e noias
Roberto Piva e Paranoias
Recife da Estação da Luz
Da São João do João
Silvério Trevisan
Recife Purpurina
Da Rua em que vim um dia
amarrar os meus cavalos
Bois e boys
Recife do Arouche
Tenho medo de que achem feio
o nome da rua bem no centro
deste Centro nervoso
Rêgo Freitas não é título que se dê
Minhocão muito menos
Acham estranhos os nomes
das vias da Vila Madalena
Girassol Simpatia Harmonia
Não expulsem as travestis
da Praça Roosevelt
Nem os vendedores de milho
Não deem tiros no meu peito
Recife do meu primeiro
Beijo aos pombos
Recife tão grande
Longe e perto e amplo
Recife meu sentimento
Mais concreto
Saraus abrindo versos
Entre São Paulo e Pernambuco
Recife aqui dentro
Para além do esquecimento
Bandeira em plumoso movimento
Pela Avenida Paulista
Recife a todo momento
Minha vida que poderia
Ter sido e segue comigo
A perder de vista
Para além deste poema
 
 
(por José Juva) 

Recife, eu tinha pernas miúdas
muito antes dos porres de vinho
nas rodas punk no Antigo
muito antes do trabalho triste
de ligar para delegacias muito antes
de ver a cabeça de pedra de Bandeira
muito antes de atravessar as pontes
de madrugada e voltar para o futuro
 
Recife era a pequena casa de minha avó
numa travessa ali perto da Aurora
e a vida chegava com suas bagagens do incompreensível
com os garotos que cheiravam cola, com o mendigo
(que se chamava Amigão) quase sempre bêbado
 
e eu não pensava na morte e me deitava
no colo de epifanias nanicas
 
olhar por cima do muro um estacionamento
nos ombros do meu tio, receber uma fita k-7 do Pantera
gravada pelo meu primo, reparar no colorido das embalagens dos cigarros
ao ir comprar pão na padaria Aquário, logo ali na esquina
 
Recife, minha avó mais velhinha e minhas pernas
misturam os caminhos que me trouxeram pra cá
Rua do Sossego, Alegria, Glória, Fundição
 
Recife, passagem de som e sonho,
tropeção
 
 

Recife sem nada
(por Adelaide Ivánova)



Joel é filho de Dora Datz, que era amiga da minha vó quando todos morávamos na praça Chora Menino. A casa deles era tipo um sonho, e os Datz são a memória mais fascinante da minha infância. Quase nada sobrou desses dias, mas, em ruínas, a casa de Dora, Abraão e Joel existe.

Fazer essa foto foi uma das experiências mais emocionantes que vivi no Recife, quando voltei a entrar na casa dos Datz depois de 25 anos longe.

Esse verso do poema, que diz “Recife sem nada”, mexe muito comigo porque essa é a sensação que tenho constantemente quando vou praí, mas essa foto contradiz o verso, por isso que a escolhi.

pas rgada
(por Wellington de Melo)
 
volto a pas rgada numa manhã de alumínio ambrosia água suja cacos de sonho céu toneladas de sal chumbo no sol dedos apontando a aurora dedos e as cinzas das últimas certezas no pórtico flácido do palácio de pas rgada a cabeça degolada do rei me sorri amarelo eu atravesso a ponte levadiça com minha fúria de náufrago minha vontade de ser sem mapa volto a pas rgada numa tarde insone bicicletas dependuradas nas janelas crianças que nunca chegam telefones enfeitando a sala de estar do velório multidão juvenil nos cemitérios as mulheres ah as doces mulheres de pas rgada e seu olhar de vidro carne e osso as mulheres de pas rgada rastejando sua insônia pelas ruas lamacentas ruminando memórias encarceradas em velhos calendários voltei a pas rgada uma última vez numa noite que cheirava a suicídio nada meu mundo querendo ser outro meu mundo querendo ser pas rgada e eu querendo meu mundo aqui eu querendo meu medo aqui

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