ENCONTRO

J. Borges faz xilogravuras para conto de José Saramago

O xilogravurista pernambucano foi convidado a criar ilustrações para o conto fantástico O Lagarto

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 13/07/2016 às 5:00
Bobby Fabisak/JC Imagem
FOTO: Bobby Fabisak/JC Imagem
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José Saramago (1922-2010), em uma crônica publicada na imprensa portuguesa em 1972, ensaiava uma história fantástica: um conto de fadas sobre um lagarto imenso que apareceu no bairro do Chiado, em Lisboa. O evento surreal, que evacua o bairro e mobiliza exército e bombeiros, bem que poderia ser parte de uma das aventuras do imaginário popular do Nordeste, tão influenciadas pela cultura ibérica. Afinal, já no fim do texto, intitulado O Lagarto, o próprio Nobel da Literatura português sintetiza a trama em uma quadrinha simples: “Calados, muitos recordam,/ Na prosa das suas casas,/ O lagarto que era rosa,/ Aquela rosa com asas.”

Ao reler essa crônica, o editor argentino radicado em Barcelona Alejandro García Schnetzer viu nela o poder de um breve conto. Decidiu fazer do texto um livro, convidando para ilustrá-lo um mestre que admirava há décadas: o pernambucano J. Borges, de 81 anos. “Ouvi falar dele em 1993, através de Eduardo Galeano, que incluiu gravuras suas no livro As Palavras Andantes. Este volume deu a conhecer J. Borges fora do Brasil”, comenta Schnetzer, em uma entrevista para a revista virtual Blimunda, da Fundação José Saramago, deste mês.

Como não havia internet ainda, Schnetzer só sabia do xilogravurista o que Galeano contava: sabia “que vendia os seus romances de cordel pelos mercados do Nordeste, com as suas estórias de mistérios e de aparições, como este lagarto que surgiu no Chiado”. Pensou que estava ali o mote da parceria: levar para o fantástico de Saramago o fantástico de Jota Borges. Um encontro de Josés, como definiu a presidente da Fundação José Saramago e companheiro do escritor Pilar del Río. Ou um livro que contém não só uma pessoa dentro dele, mas duas.

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J. Borges no seu ateliê - Bobby Fabisak/JC Imagem
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Capa do livro O Lagarto, com ilustrações de J. Borges e texto de José Saramago - Divulgação
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Xilogravura do livro O Lagarto, com ilustrações de J. Borges e texto de José Saramago - Bobby Fabisak/JC Imagem
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Xilogravura do livro O Lagarto, com ilustrações de J. Borges e texto de José Saramago - Bobby Fabisak/JC Imagem
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Xilogravura do livro O Lagarto, com ilustrações de J. Borges e texto de José Saramago - Divulgação

Schnetzer não mede palavras para exaltar J. Borges: “É imenso. Poderia falar bastamente da minha admiração por ele, do assombro que os seus trabalhos sempre me causaram.” Além disso, a história tem uma singularidade política, pois fala de um lagarto gigante que se transforma em uma rosa anos antes da Revolução dos Cravos, que derrubou o Estado Novo lusitano e usou o simbolismo de flores também vermelhas.

J. Borges e Saramago não chegaram a se conhecer, mas o português admirava bastante a obra do xilogravurista – junto com Pilar, tinha algumas obras do pernambucano, atualmente locadas em Madrid. Daqui, J. Borges lembra do convite importante de um editor argentino de sobrenome difícil. “Fiz ano passado a série com dez xilos, criei esse lagarto gigante no meio das avenidas”, comenta.

É mais uma parceria de prestígio – tanto para J. Borges quanto para Saramago. A previsão de publicação de O Lagarto em Portugal, pela Porto Editora, é para setembro, período em que acontece o Festival Literário Internacional de Óbidos (Folio) – as gravuras e suas matrizes em madeira de louro-canela vão estar expostas ao longo do evento, que começa no dia 22 de setembro e vai até 2 de outubro. No Brasil, ainda não há previsão de impressão, mas o material já está aos cuidados da Companhia das Letras. É esperar para ver como esse dois Josés se ampliam, transformando lagartos em rosas rubras e textos e imagens em uma nova obra.

Entrevista - Pilar del Río

Tom Cabral/Divulgação

JORNAL DO COMMERCIO – Pilar, como nasceu encontro desses dois Josés? Você já tinha esse desejo de unir a prosa de Saramago com os desenhos de J. Borges?
PILAR DEL RÍO –
Saramago conheceu a obra de J. Borges, temos em Madrid alguns gravados do artista pernambucano. Acho que nunca se conheceram pessoalmente, mas Saramago conhecia e gostava do trabalho de J. Borges. O desejo de unir as palavras de um José e os desenhos de outro foi ideia de um editor argentino radicado em Barcelona, Alejandro García Schnetzer, que já havia feito um livro de José Saramago com ilustrações do espanhol Manuel Estrada. Schnetzer leu essa crônica de José Saramago, ficou encantado e em seguida sugeriu que se fizesse um livro ilustrado. O nome de J. Borges pareceu-nos quase que óbvio. Ficamos muito contentes que ele tenha aceito fazer esse trabalho e nos fascinou o resultado. Temos aqui na fundação as matrizes em madeira com as xilogravuras, é uma joia que em breve será mostrada no Festival Internacional de Óbidos. É uma pena que Saramago não possa ver esse trabalho, e faz-nos pensar em tudo que poderia ser feito e que a falta de tempo de uma vida impediu.
 
JC – Como foi essa interpretação de J. Borges do conto O Lagarto? Deu uma nova vida à trama fantástica do conto?
PILAR –
J. Borges, com seu traço único, o que fez foi dar uma nova vida a palavras de José Saramago. Um texto de 1972 que ganha uma nova roupa, colorida e com força e graça. Saramago dizia que os livros deveriam trazer uma advertência na capa: ‘Atenção, este livro leva uma pessoa dentro’. Falava, claro, do autor. Neste caso terá que ser: ‘Atenção, este livro leva duas pessoas’. Fica a sugestão para as editoras. No Brasil, a Companhia das Letras, e em Portugal, a Porto Editora. O livro sai em breve em Portugal.
 
JC – Por conta de Eduardo Galeano, J. Borges ficou conhecido internacionalmente. Saramago era um admirador das xilogravuras dele?
PILAR –
José Saramago dizia que para ele J. Borges compreendia e explica o mundo de forma aparentemente simples, ao mesmo tempo que profunda. Este Borges se aproximava, para Saramago, dos seus avós – ainda que este tenha mais cultura – enquanto ao modo de olhar o mundo. Além disso, Saramago tinha muito apreço pelos trabalhos de criação. Na sua mesa de trabalho, por exemplo, estava um crucifixo que um artesão lhe dera de presente após ler O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Para ele não era uma homenagem a um homem crucificado senão ao homem que fez aquela peça e que a compartilhou. Criar é compartilhar, e agora dois Josés nos presenteiam com uma obra que deve ser compartilhada. Um grande presente.

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