Nas décadas de atuação em seu escritório de advocacia, o que mais fascina o escritor José Paulo Cavalcanti Filho não são os embates jurídicos, o brilho, a notoriedade ou sequer o dinheiro. O aspecto de que mais gosta no seu trabalho, ele garante, é a possibilidade de travar contato com a natureza humana: afinal, ao longo da carreira, observou muitos casos singulares e histórias extraordinárias. “Eu tinha essa dívida comigo mesmo, com meu pai e com o escritório: precisava escrever um livro sobre tudo que vi e ouvi”, explica.
Os contos de Somente a Verdade (Record) são todos baseados em casos reais: depois de anos de separação, um homem que beija a ex-esposa, atendendo a um pedido dela, na cama de um hospital; uma mãe se recusa a morrer antes de encontrar o corpo do filho, assassinado pela ditadura; um homem quer e não quer saber se é o pai biológico do filho do grande amor da sua vida. São vinte histórias reais, todas com as identidades devidamente preservadas, e um único relato em primeira pessoa sobre Hermilo Borba Filho.
“Eu sou fascinado pelos Quixotes e Sancho Panças que somos. As histórias são todas verdadeiras, com leve mudanças – os finais, por exemplo, são criados para dar um arremate. A essência delas é verdadeira”, comenta José Paulo, autor de Fernando Pessoa, uma Quase Autobiografia, obra vencedora do Jabuti. De certa forma, é como se Somente a Verdade fosse a transição do autor do reino da biografia para o da ficção através de narrativas com um fundo real. “Ao ler estes relatos, espero apenas que os leitores possam conhecer um pouco mais das incertezas que nos habitam”, escreve na apresentação da obra.
O contrato com a editora Record previa, depois dos livros sobre Fernando Pessoa, que José Paulo escrevesse um romance. Ele, no entanto, sentia que precisava abordar essas histórias reais. “Era um compromisso com o meu pai e comigo. Se eu não contasse tudo isso, as histórias iam embora, ninguém ia saber que elas existem”, afirma. O volume é dedicado ao seu filho mais velho, Serginho, que trabalha com ele no escritório.
José Paulo ouviu ou foi coadjuvante, como advogado, de vários relatos. Todos são contados em terceira pessoa, com ele mesmo se “retirando” das histórias. No início, a ideia não era nem citar a presença do mundo do direito quando possível. “Eram mais de 30 histórias. Um amigo meu da Academia Brasileira de Letras que leu perguntou: ‘Cadê você nas histórias? Se a gente vai acreditar nelas, você tem que estar’”, narra. “Não ficou uma presença decisiva, mas tive que voltar para os contos por esse motivo.”
Na última história, sobre Hermilo, tentou de todas as formas contá-la de modo mais impessoal e não conseguiu. “Eu era recém-formado, me dava muito bem com ele e fui chamado para fazer seu testamento. Contando isso na terceira pessoa não passava emoção. Só quando contei na primeira pessoa senti que funcionou”, diz. Não por acaso, é talvez a narrativa que mais emociona o escritor.
Criar os contos foi um processo demorado: José Paulo diz que os reviu e releu pelo menos 100 vezes. “Eu sou muito exigente comigo mesmo. Escrevo primeiro à caneta e entrego para a minha secretária digitar no computador. Assim, corrijo e acrescento à caneta. E repito isso exaustivamente. Antes, escrevo tudo que tenho para dizer, sem me preocupar com a ordem. Depois organizo o que foi dito, numa sequência lógica. A terceira frase é atentar para o som das palavras”, descreve. “O livro não é o melhor possível, mas é o melhor que eu sou capaz de fazer. Só mandei para a editora quando li o resultado final cinco vezes e só mudei uma letra.”
José Paulo ainda não tem certeza se fará um lançamento formal da obra. “Eu acho algo provinciano, que constrange os amigos. Minha mulher acha que devo lançar”, pondera. Ainda assim, diz estar feliz com a resposta dos primeiros leitores do volume. E adianta: já assinou um contrato para transformar as histórias de Somente a Verdade em uma minissérie. “Vão mudar elementos, devem me transformar em um personagem mais marcante, essas coisas”, comenta.
O desafio, agora, é escrever o romance, “sem nenhuma preocupação de quando vou acabar”. O tema é bem conhecido dos pernambucanos: o caso de canibalismo que aconteceu em Gravatá. “As pessoas não perceberam que há de natureza humana por trás daquilo. Por exemplo: a mulher casa com o sujeito. Ela é mais velha que ele e, 20 anos depois, só ela envelheceu, e o homem se apaixona por uma garota de 16 anos. A mulher tinha um amor tão grande que aceita a garota na sua casa, acolhe ela para não perder o marido. Os três até dormiam na mesma cama! Só isso foi o primeiro detalhe que me fascinou, existem mais 200 nesse caso”, adianta José Paulo.
FERNANDO PESSOA - Enquanto José Paulo Cavalcanti mergulha na ficção – com uma essência real –, o seu mais famoso livro, Fernando Pessoa, uma Quase Autobiografia, continua a circular. “Ele sai na França no final do ano e eu já assinei para traduções na Alemanha e na Rússia, enquanto ainda negocio com a Holanda”, adianta.
Segundo José Paulo, só falta um produto para “se livrar de vez do livro” de Pessoa: a série de televisão. Produzida para o History Channel, ela teria quatro capítulos, apresentados por Marcelo Tas, que comanda as gravações. “Os episódio são sobre a ideia das quatro estações. Depois de ser exibida, a série para o Netflix, e as edições de 50 minutos viram 16 episódios de cerca de 10 minutos”, explica. No final de cada um, a produção criou um questionário para ser feito. “O meu favorito é para você descobrir qual heterônimo você é. Tas é Alberto Caeiro, e eu sou Fernando Pessoa”, revela.
O terreno em que ficava a casa em que José Paulo morou também vai se vincular a sua paixão pelo poeta português. Vendido para uma construtora, o quarteirão em Piedade, na beira do mar, vai dar lugar ao Edifício Fernando Pessoa. “Precisei sair porque era um lugar grande para alguém que não tem mais os filhos”, comenta. Na negociação, pôde escolher o nome do edifício – quem deu a ideia foi sua esposa, Maria Lecticia Cavalcanti.
São quatro andares, cada um com 20 apartamentos divididos em duas partes – e todos os apartamentos foram vendidos em poucos dias. Eles, claro, ganharam nomes em homenagem aos heterônimos do poeta. “Se chamam, do primeiro ao quarto, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares”, conta José Paulo. No hall dos elevadores, cada andar terá um texto do respectivo nome, ainda a ser escolhido pelo autor.
