“Não sei se é possível levar a literatura muito a sério, mas do mesmo jeito eu não consigo fazer outra coisa”, diz o paulista – e dependente da invenção literária – Ricardo Lísias. Um dos mais aclamados nomes da escrita atual, ele lança A Vista Particular (Alfaguara), em que aborda com ironia a arte e a violência do Rio de Janeiro. Nesta entrevista, ele comenta a sua ficção repleta de elementos da nossa “realidade”.
JORNAL DO COMMERCIO – O Rio de Janeiro como uma espécie de cenário-personagem é um elemento novo que A Vista Particular traz. Foi uma forma de deslocar seu texto? Gostou de escrever sobre outra cidade?
RICARDO LÍSIAS – Eu já tinha falado bastante de São Paulo no Divórcio. Achei que o Rio de Janeiro, uma espécie de ilha da fantasia, caberia bem na ideia de discutir certas hipocrisias contemporâneas. É uma cidade muito estranha: às vezes fico pensando como ainda existe. Como podem chamar uma cidade em que os direitos mais básicos do cidadão são usurpados o tempo inteiro de “maravilhosa”?
Certo, eu sei que no Brasil todos os nossos direitos são subtraídos o tempo todo. Só que no Rio de Janeiro é tudo às claras, bem aos olhos do Cristo Redentor, na frente de todo mundo. É uma cara de pau impressionante.
JC - José de Arariboia é um personagem enigmático – um artista que se torna repentinamente uma celebridade, mas que se recusa a ser discursivo (ao contrário de boa parte da arte contemporânea). O isolamento do personagem, apesar de tudo, é uma crítica ao universo de discursos da arte e cultura atual, em que a obra fica sempre em segundo plano?
LÍSIAS – Não sei dizer. Eu mesmo prefiro falar muito mais “sim” do que “não”. Eu acho o José de Arariboia às vezes muito incomodado com a própria situação; outras perplexo e na maior parte das vezes conformado. Ele tenta mostrar a partir de um determinado momento que tem controle da situação, mas o problema é a situação que ele acha controlar: para citar um livro que eu adoro, “o mundo se despedaça” diante dele.
JC - O mundo da arte está o tempo todo fascinado e com medo da realidade dos morros e favelas cariocas apropriada por José de Arariboia. A arte e a ficção vampirizam de alguma forma a miséria e os problemas reais?
LÍSIAS – Eu acho que na verdade é a realidade que vampiriza os problemas sociais. O que não são esses políticos manipulando o tempo inteiro as necessidades mais básicas das pessoas? E esses “cartões postais” da cidade do Rio de Janeiro, com a natureza “abraçando” uma tragédia em que a população vulnerável é assassinada o tempo inteiro? Parece que a realidade fica o tempo inteiro tentando martelar que as coisas são assim e que teremos que viver assim para sempre. Ora, nem a arte contemporânea, com a aceitação do aspecto passageiro de muitas obras, acredita mais na eternidade, por que querem nos obrigar a viver sempre nessa mesma realidade degradante e para muitos meramente assassina?
JC - Usar nomes reais de críticos e jornalistas para comentários do livro foi uma forma de criticar esse personalismo do mundo da arte? Ao mesmo tempo, existe a menção a casos reais de violência policial. É uma forma de não esquecê-los?
LÍSIAS – Acho que os nomes citados fazem parte da construção da trama. Não havia razão para colocar outros nomes. O enredo os exigia e lá eles estão. Não posso sacrificar minha coerência estética por nenhum outro motivo. Além disso, essa é uma tendência contemporânea: acompanho de muito perto os livros do M. Houllebecq, do Vila-Matas e de muitos outros. Essa questão não parece causar estranhamento fora do Brasil e nem com escritores estrangeiros. Não podemos esquecer jamais o Amarildo!
JC - A linguagem do romance é muito direta e, talvez por isso, soa ainda mais irônica. A ideia de um narrador distante, dos capítulos com resumos, é para dar esse ar “distante” na narrativa?
LÍSIAS – Sim, é para se distanciar dela e também para que o próprio livro não escapasse da destruição que estava tomando conta de tudo. Como vou dizer na próxima resposta, não é que o livro esteja em oposição à realidade, ele faz parte dessa realidade em destruição.
JC - Depois de várias narrativas de “autoficção” (por assim dizer), A Vista Particular é uma outra forma de falar sobre os limites entre arte e realidade?
LÍSIAS – Não acredito que arte e realidade estejam em lados opostos. Eu sequer acho que a realidade seja captável pela arte – ou por qualquer outra coisa, aliás. A literatura faz parte da realidade, intervindo nela. Dizendo de forma clara: a literatura não representa a realidade, ela intervém na realidade. É curioso, mas algumas pessoas escreveram que meus textos confundem o que é realidade e o que não é. Não consigo compreender esse tipo de raciocínio: há muito tempo a filosofia da linguagem, por exemplo, já mostrou que a realidade não é uma instância domável e transmissível.
Acho melhor a gente esquecer esse termo tão falado, “realidade”. Ele não serve de fato para muita coisa, é uma palavra gasta e já muito fora de moda. Acho que é um desses termos que precisam ser ressignificados. Pensando agora, talvez meus textos sirvam para mostrar que a palavra “realidade” já não tem muito valor.
JC - Você ainda continua escrevendo sobre o personagem Ricardo Lísias? Ou se trata de um tema/formato acabado?
LÍSIAS – A essa altura, eu já não arrisco nenhum tipo de previsão. Não sei se o Delegado Tobias vai me deixar em paz...
JC - A Vista Particular tem seu lado de celebração do poder que a arte ainda poderia ter e um decreto da falência de parte dela. Acredita, no Brasil e no mundo de hoje, que a literatura pode ser um meio de transformar a realidade, de despertar algo nela? Ou sua inutilidade é o seu poder?
LÍSIAS – Não acho de forma nenhuma que a literatura seja inútil. Aliás, tenho inclusive suspeita sobre a frequente afirmação de perda de seu poder de intervenção. Ela nunca foi realmente mais significativo do que as armas, a força dos políticos ou outras instâncias sociais. Mas há muitos escritores com forte penetração política e social. Michel Houllebecq é um deles, há muitos outros. Por outro lado, não é possível acreditar em muita coisa como antes: a literatura por exemplo não tem as mesmas possibilidades narrativas que tinha há um ou dois séculos. É preciso procurar brechas na linguagem, os fracassos envolvidos no ato da escrita e da composição de uma obra e como é possível produzir algo a partir de agora. Não sei se é possível levar a literatura muito a sério, mas do mesmo jeito eu não consigo fazer outra coisa. É impressionante, parece um vício como o alcoolismo ou o uso de drogas. Não consigo parar de ficar inventando coisas. Devo ser dependente da invenção literária mesmo.
CRÍTICA
Quando sabemos que há algo oculto, até as frases mais simples podem soar irônicas. Uma boa parte do que diz e conta o narrador do romance A Vista Particular, de Ricardo Lísias, não é muito diferente do que já foi enunciado por muitos – por exemplo, o mercantilismo das relações entre artistas, galerias e marchands ou a violência do tráfico e da polícia nas comunidades do Rio de Janeiro. Ainda assim, numa linguagem quase cínica de tão límpida, o que é corriqueiro parece finalmente gritar o seu absurdo.
A Vista Particular traz um Ricardo Lísias diferente dos presente nos últimos livros, como O Céu dos Suicidas, Divórcio e Delegado Tobias. Antes de tudo, porque não há um personagem com seu nome e uma bagagem de experiências parecida com a do autor – não se trata, portanto, do que se convencionou chamar de autoficção, a literatura que brinca com as fronteiras entre fatos e ficção. Além disso, a cidade de Lísias, São Paulo, dá espaço ao Rio de Janeiro, um cenário-protagonista do romance.
José de Arariboia é um artista jovem e promissor no cenário (e mercado) da arte brasileira. Pinta quadros (nunca mostrados, mas comentados e descritos), almeja uma exposição no Museu de Arte do Rio e um texto crítico de Georges Didi-Huberman, tem uma relação tranquila com sua marchand, Marina dalla Donatella. Um dia, muda seu percurso cotidiano de caminhada e sobe no morro do Pavão-Pavãozinho. Quando volta, está nu e fazendo uma espécie de dança ou performance, ainda que não a chame por nenhum dos dois nomes.
O artista começa a ser filmado e seguido pelas ruas do rio, arrastando uma multidão que tenta imitar seus passos até a Praia de Copacabana, quando a polícia encerra a confusão. No Youtube, o vídeo da performance, gravado por um traficante fascinado por filmagens, Biribó, chega a milhões de visualizações. Ninguém entende direito se foi um surto ou uma mudança de rumos. Sua marchand o abandona com medo do vexame para sua galeria. A fama dele, no entanto, só cresce – é tema de programa na Globo News, Maria Rita Khel e Vladimir Safatle emitem opinião sobre sua performance, Luiz Felipe Pondé o critica. No fim, há um genuíno fascínio da população carioca pelo artista e ele, com ajuda de Biribó, começa a executar uma outra obra no Pavão-Pavãozinho: sua virada é a de trazer o olhar da arte para o que já está lá, no dia-a-dia violento, cruel ou bonito daquelas pessoas.
Zé Arariba (como passa a ser reconhecido) não é um herói ou um vilão na trama, e o espinhoso debate em torno da estetização da tragédia dos outros ajuda a tornar a obra de Lísias ainda mais dúbia. Ou seja, aos poucos, A Vista Particular penetra na admiração a qualquer custo do mundo da arte pelo novo, na estetização da pobreza, na idealização instantânea das redes sociais. No entanto, seu tema principal talvez seja o fosso inconciliável entre realidade e arte. Lísias parece reconhecer a inutilidade de separá-las enquanto mostra que uma tenta canibalizar a outra.
Como nos seus romances anteriores, o autor mescla fatos reais com inventados porque parece, assim, ressaltar a capacidade da arte e da ficção de nos iludir, mesmo quando somos avisados de que se trata de um show de mágica. Se antes misturávamos vida pessoal com personagem, aqui é a realidade – seja lá o que chamemos disso – que emerge o tempo todo de uma situação forjada pela escrita. Não por acaso o livro fala do caso do assassinato do ajudante de pedreiro Amarildo, torturando e executado pela polícia, e de outras mortes: eis o cotidiano do Brasil, em seu espetáculo e miséria. E a história traz ainda uma triste constatação (ou ironia?), em um necrológio: “por mais que tente, a arte não muda ninguém”.