ENTREVISTA

José Castello fala sobre O Processo, de Kafka, e os tempos atuais

Convidado para a Semana do Livro de Pernambuco, o escritor e crítico literário vai debater o romance do autor tcheco

Diogo Guedes
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Publicado em 16/11/2016 às 5:14
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Convidado para a Semana do Livro de Pernambuco, o escritor e crítico literário vai debater o romance do autor tcheco - FOTO: Divulgação
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Um homem é preso sem culpa e sem saber qual o seu crime. Em tempos de judicialização da política – e de um judiciário que aparente ser cada vez mais político – o romance O Processo, clássico da literatura ocidental criado por Franz Kafka, nunca pareceu tão atual para o escritor e crítico literário José Castello com agora. Convidado para a Semana do Livro de Pernambuco, o autor do premiado Ribamar vai participar da abertura, no dia 30 de novembro, com uma aula e conversa sobre o romance do escritor tcheco e a angústia de Joseph K., personagem que, “quanto mais luta para se defender, mais afunda”. “A era das sombras é também a era dos escândalos (...) Diante desse reinado do irracional, as acusações rivalizam com das mais bisonhas peças de ficção”, opina Castello. Confira a entrevista por e-mail abaixo.

Confira a entrevista com José Castello


JORNAL DO COMMERCIO - Castello, você vem falar sobre o romance O Processo, de Franz Kafka. Ao reler a obra, você se assustou com a atualidade dela? Kafka ainda nos diz muito?
JOSÉ CASTELLO –
Quase cem anos depois da morte de Franz Kafka, sua obra se mostra espantosamente atual. Isso acontece, em particular, se pensarmos em O Processo. O romance narra a história de Joseph K., um bancário que, sem saber os motivos, é acusado de um crime. Acabara de acordar quando é detido dentro de seu próprio quarto por dois supostos agentes da lei. Torna-se então vítima de um processo obscuro no qual sua culpa independente de provas e não se vincula a nenhum tipo de razão. Enquanto os agentes da lei tentam encontrar fatos que justifiquem o processo, Joseph K. se vê enredado numa trama nevoenta na qual, quanto mais luta para se defender, mais afunda. Os paralelos do romance de Kafka com a realidade contemporânea brasileira não precisam ser explicados.

 

JC – O sistema jurídico tem sido um protagonista da política no Brasil. Existe uma semelhança com a inacessibilidade da lei no livro de Kafka?
CASTELLO –
Sim, também no caso brasileiro a lei se torna cada vez mais enigmática e mais inacessível. As convicções se sobrepõem às provas. As crenças dispensam as demonstrações. É importante dizer, no entanto, que este cenário assustador não é criado apenas por parte dos agentes da justiça, mas também pela polícia e por setores importantes da mídia. Também a imprensa – contrariando tudo o que aprendi nos bancos da escola de jornalismo - passa a desprezar as provas e os fatos, como se eles fossem elementos meramente decorativos. A era das sombras é também a era dos escândalos, que alimentam as manchetes de jornais, os programas informativos na TV e as capas das revistas. Diante desse reinado do irracional, as acusações rivalizam com das mais bisonhas peças de ficção. Também Joseph K. está enredado em uma teia grudenta. Quanto mais tenta se defender – contratando um advogado, certo Huld, ou se aproximando de personagens que gozam de intimidade com a lei, como o pintor Titorelli –, mais ele se distancia da verdade.

JC – O livro traz uma crítica severa à burocracia, esse método que existe para si mesmo. Também nisso ele é revelador?
CASTELLO –
Sim, a burocracia se caracteriza pela submissão da verdade ao rito. Ela é uma espécie de máquina sinistra, que independe dos conteúdos. Essa é, na verdade, e espantosamente, uma característica não só brasileira, mas de nosso mundo globalizado. Cada vez mais nos sentimos retidos em tramas que nos escapam e somos manipulados por lógicas que desconhecemos. O excesso de informações e de imagens produzidos pelo mundo virtual, mais do que iluminar nosso caminho, nos cega. Com isso, os limites se eSfumam, as fronteiras se quebram e verdade e mentira se tornam inseparáveis. Submetidos a computadores, a celulares, a tablets, estamos, nós também, enredados por uma espécie de burocracia da luz, que, em vez de clarear nosso caminho, torna o mundo cada vez mais opaco.
 
JC – A prosa de Kafka é também assustadora porque parece enunciar de forma (falsamente) simples cenas e situações absurdas. O surreal é o cotidiano. É um autor para o qual você sempre retorna? Ainda vê sua literatura reverberar mundo na escrita atual?
CASTELLO –
O surreal hoje se expressa, por exemplo, nas diversas formas de fundamentalismo, em particular nos religiosos, que se espalham por nosso país. Mas também no fundamentalismo político. Quando priorizamos as convicções e as crenças, tudo se torna possível e aceitável. O surreal, diz o dicionário, é uma transgressão da verdade. Infelizmente, no Brasil de hoje as crenças, de todos os tipos, se sobrepõem à razão. Basta dizer “Eu acredito” e qualquer ato se justifica. De fato, entramos assim no reino do absurdo. Não é por outro motivo que flagrantes aberrações – como um golpe político contra uma presidenta legitimamente eleita – ganham a aparência de normalidade.
 
JC – Castello, você está trabalhando em novos livros? Se sim, quais?
CASTELLO –
Na próxima quarta-feira 23, lanço, no Rio de Janeiro, um novo livro, Dentro de Mim Ninguém Entra, que tenho a honra de assinar ao lado do genial Arthur Bispo do Rosário. Meu relato, que traz o selo da editora Berlendis, vem acompanhado de reproduções da obra de Bispo. Na tarde do dia 30, logo após minha palestra no Recife, haverá também um espaço para autógrafos. Minha história é narrada por um menino de 11 anos – mas nem eu mesmo sei dizer se ela é ou não uma narrativa infanto-juvenil. Deixo a resposta para os leitores.

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