HERANÇA

Livro inédito escrito por Ariano Suassuna durante 33 anos será publicado

Obra completa do escritor paraibano está nas mãos de nova editora

Adriana Victor
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Adriana Victor
Publicado em 19/11/2016 às 1:00
Tato Rocha/JC Imagem
Obra completa do escritor paraibano está nas mãos de nova editora - FOTO: Tato Rocha/JC Imagem
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 “A arte redime tudo pela beleza.” A declaração do escritor Ariano Suassuna certamente imprimia ao verbo da frase o significado de libertação. Passados dois anos e quatro meses de sua morte, a família, sob a coordenação do filho e artista plástico Manuel Dantas, decide o destino da criação do escritor: a editora Nova Fronteira – informação divulgada em Pernambuco com exclusividade para o JC. Pelo acordo firmado com a editora, passado e futuro da literatura de Ariano haverão de se encontrar, graças a um longo planejamento editorial proposto pela família e aceito pela Nova Fronteira. “É como se estivéssemos unificando toda a obra dele”, avalia Manuel Dantas. Isso significa que os livros do escritor paraibano, inéditos ou não, serão lançados ou relançados. Há uma redenção literária a caminho.

A estreia da parceria prevê o lançamento da obra que foi escrita durante 33 anos, o “livro da vida”, como definiu o seu criador – o inédito romance ao qual Ariano se dedicou, desde 1981 até os seus últimos dias. “Nele, pela primeira vez, vou unir meu romance, meu teatro e minha poesia. Passo a limpo tudo o que eu fiz, tudo o que vivi e o que pensei”, declarava o escritor. E uma surpresa: o livro vai se chamar A Ilumiara – Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores. Será dividido em dois volumes, intitulados O Jumento Sedutor e O Palhaço Tetrafônico. “Ele tinha dito que O Jumento Sedutor seria o nome do livro maior, do principal. Mas acho que estava fazendo uma brincadeira com os jornalistas”, diz o filho.

O romance, dividido em andamentos musicais e ilustrado por Ariano com desenhos de inspirações rupestre e barroca, é chamado também de “autobiografia musical, dançarina, poética, teatral e videográfica” (vai incluir um DVD, atendendo a um desejo do autor). “Ariano revisita a sua própria obra, mergulhado em diversos personagens, todos com as letras A e S como iniciais: Antero Savedra, Auro Shabino, Altino Sotero. Ele atribui a criação dos personagens a Dom Pantero, um misto de palhaço e professor – assim como ele – que ministra aulas espetaculosas”, revela o escritor Carlos Newton Júnior, que há 30 anos se dedica à obra de Ariano.

Desde 2010 Carlos vinha digitando os manuscritos do novo livro; é também um dos responsáveis pela costura dos acertos com a Nova Fronteira, juntamente com a agente literária Lúcia Riff e os herdeiros diretos: além de Dantas, Zélia, a esposa, as filhas Maria, Isabel, Ana Rita e Mariana e os netos João e Germana (filhos de Joaquim). Segundo a família, que decidiu coletivamente os destinos da criação literária de Ariano, outras quatro editoras participavam das negociações, de 2014 até agora. “Precisávamos desse tempo pra esfriar a dor, assentar tudo”, diz Dantas.

O que pesou na escolha pela Nova Fronteira foi o fato de a direção geral das edições e reedições ser tocada do Recife, sob a coordenação geral e artística de Manuel Dantas Suassuna e a coordenação editorial de Carlos Newton Júnior. O designer Ricardo Gouveia de Melo participará da diagramação e projetos gráficos dos livros.

Além disso, a editora bancou o desejo da família de abarcar toda obra, comprometendo-se a publicar a criação inédita (ver abaixo) e republicar obras consagradas – algumas esgotadas há anos, como é o caso de Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja. No livro, Ariano dá início ao que viria a ser, tempos depois, a Tipografia Armorial, letras criadas tendo como base os ferros de marcar bois.

Entre os inéditos, há, por exemplo, As Conchambranças de Quaderna, texto de dramaturgia que já teve três montagens e nunca foi publicado. O contrato de longa duração também prevê a publicação de outros romances e da poesia de Ariano: “Na Literatura que me entusiasma, a Poesia é sempre o chão sagrado no qual a prosa Armorial viceja”, repetia o escritor com o entusiasmo que o distinguia.

ILUMIARA

 

A data já está marcada: 16 de junho de 2017, dia em que Ariano completaria 90 anos. “Vamos fazer uma grande exposição, unindo os desenhos criados para o romance, desenhos originais da Pedra do Reino, que conseguimos reaver, e alguns manuscritos”, avisa Dantas. Além do lançamento da obra inédita, haverá o relançamento do Romance d’A Pedra do Reino, considerado por Ariano como livro introdutório para o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores.

Da mesma forma que, na nova obra, o personagem Dom Pantero pretende escrever uma grande obra e a denomina de Ilumiara, Ariano já tinha decidido chamar a toda a sua criação com o mesmo nome – palavra criada por ele. “É como se fosse a unificação, a fusão de tudo o que ele escreveu – uma grande Ilumiara”, diz Dantas.

O entrelaçamento entre o que criou e a própria vida é presença permanente em sua obra. “Roberto Motta, filho do escritor Mauro Motta, escreveu num artigo que ‘todos os livros são autobiografias. Mas ele conhece os segredos das máscaras com que nos defendemos da morte’”, sentenciava Ariano.

A obra com a qual sonhou por toda a vida será, enfim, publicada. Finalizada como ele queria? “Se Ariano tivesse mais 10 anos de vida, se dedicaria por mais 10 anos a esse romance”, arrisca Carlos Newton. “Da obra ousada, é minha a parte feita: o por-fazer é só com Deus”, afirmava Ariano, ecoando os versos de Fernando Pessoa.

AMÁLGAMA DE VIDA E ARTE

Um quadro de Zélia, outro Brennand, quatro terços pendurados num prego, uma lança dos índios Fulniôs, os sapatos que foram dele. Algumas coisas mudaram no quarto de trabalho onde Ariano escrevia. “Arte pra mim é missão, vocação e festa.” A manta de maracatu bordada de vidrilhos, presente do Mestre Salustiano que ficava na sala principal, veio pra cá.

Ela, a sala principal, também passou por algumas mudanças depois de 23 de julho de 2014. Saíram os três imensos quadros criados por Dantas: um retratava os seus avós, pais de Ariano; no outro havia pintado as pedras de São José do Belmonte, as Pedras do Reino; o terceiro trazia um São Miguel. É a primeira vez, desde 2014, que estou ali.

Conto 23 pastas de cores diferentes, abarrotadas de originais, fora os papéis que estão espalhados pela mesa. Tento vestir-me com a função de repórter que ali é a minha. Aprendi a evitar o uso da primeira pessoa – aqui é difícil. Fui a primeira vez à Rua do Chacon, endereço de Ariano e Zélia, em 1995, ano em que nos conhecemos e passamos a trabalhar juntos ainda no Governo Miguel Arraes. Ariano, meu grande amigo. Dádiva, dádiva, dádiva – é mantra.

Além das funções do dia a dia, dos Cantos de Ariano, das doses de água de coco no meio da tarde, das viagens para as aulas na Mata, Agreste e Sertão, também houve conversas, relatos, confissões. “Isso é pra a minha amiga que estou contando”, dizia quando precisava de sigilo por qualquer motivo. Diversas vezes, lia em voz alta, na sala do Chacon, a obra a qual se dedicava todos os dias. Certa vez, telefonou-me para declarar: “Terminei o livro. Agora é definitivo.” Não era.

Aqui e ali, em 20 anos de convivência, entrevistas do escritor para a repórter: “Cheguei, finalmente, a uma decisão sobre o livro. E vou lhe adiantar, pela primeira vez, como vai ser – está decidido. São quatro romances, o primeiro é a nova versão d’A Pedra do Reino. O segundo vai se chamar Quaderna, O Decifrador. O terceiro é A Onça Castanha; o quarto, O Palco dos Pecadores. Juntos, formam um conjunto: A Ilumiara”.

Estávamos no Sertão da Paraíba, Taperoá, Fazenda Carnaúba dos Dantas Vilar onde os Suassunas não têm terra, mas têm casa. Final de 2006. Era repórter de TV e acompanhava as gravações da Pedra do Reino. Bodes e cabras passeavam no terreiro, a casa ao fundo: branca com detalhes em amarelo e azul.

Vida e arte amalgamadas. A cena da família de retirantes no rio seco sertanejo, descrita no romance, havia sido testemunhada por ele, confessou-me certo dia. Também no trecho agora divulgado, algumas semelhanças: no livro, o personagem Mauro toca piano nunca casa do Sertão; João, irmão de Ariano, tocava piano alegrando a sala e a família sertanejas.

O livro de sua vida foi alterado muitas vezes. Zélia brincava: “da próxima vez que ele disser que terminou, tomo os originais e mando para a editora”. Em 2013, quando teve o infarto, afirmava ter feito um pacto com Deus, tentando saber se mereceria finalizar a obra como desejava. Agora, enfim, os segredos serão revelados, sem máscaras. Segue o poder de perpetuação da arte.

OBRA INÉDITA DE ARIANO SUASSUNA

ROMANCE

O Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores

(Dividido em dois volumes: O Jumento Sedutor e O Palhaço Tetrafôncio)

O Sedutor do Sertão 

As Infâncias de Quaderna

(Publicado em jornal)

TEATRO

O Auto de João da Cruz

O Desertor de Princesa

POESIA

O Pasto Incendiado 

 

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