ESCRITA

Os 60 anos da morte da poeta chilena Gabriela Mistral

A primeira pessoa a vencer o Nobel da Literatura na América Latina, ela criou uma poesia do "épico do íntimo"

Diogo Guedes
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Publicado em 10/01/2017 às 6:07
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A primeira pessoa a vencer o Nobel da Literatura na América Latina, ela criou uma poesia do "épico do íntimo" - FOTO: Reprodução
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“É uma espécie de missionária lírica...”, assim Cecília Meireles descreveu a amiga e poeta chilena Gabriela Mistral em uma carta a Mário de Andrade. Mistral, uma poeta já aclamada internacionalmente, havia acabado de chegar ao Brasil, em 1937, onde viria a assumir depois um consulado no Rio de Janeiro. “Tinha um rosto sanguíneo, com grandes olhos claros que fechava frequentemente, o que dava a ela uma expressão séria e vaticinadora. O cabelo curto começava a se pratear (...). Tinha um ar maduro, sólido, lento. Quando ria, seu riso se mantinha por algum tempo”, escreveu Cecilia anos depois sobre a amiga.

Mistral já era um ícone da literatura latino-americana nos anos 1930 e 1940, mas a sua importância ainda viria a crescer. A autora de Desolação se tornaria, em 1945, a primeira pessoa da América Latina a vencer o Nobel da Literatura – ela ainda morava no Brasil, em Petrópolis, na época. Hoje, sua morte prematura, aos 67 anos, por conta de um câncer no pâncreas, completa exatos 60 anos.

A autora nasceu em Vicuña, em 1889, como Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga. Desde cedo, demonstrou um interesse duplo: tanto pela escrita como pela docência. Quando tinha 25 anos, ganhou um concurso de poesia – começava a nascer Gabriela Mistral, nome criado a partir do poeta decadentista italiano Gabriele D’Annunzio (1863-1938) e do francês Frédéric Mistral (1830-1914).

Logo ela se tornaria uma referência na pedagogia – elaborou as bases do sistema educacional do México – e na literatura. Boa parte de sua vida, a partir de então, foi circulando pela Europa, Estados Unidos e América Latina.

Sua vida tem episódios trágicos: o suicídio de um possível namorado, Romelio Ureta, e o posterior suicídio do sobrinho e filho adotivo, Yin Yin. Ao longo da vida, teve várias relações íntimas com amigas – a mais conhecida delas foi com Doris Dana, que chegou a atuar como sua secretária.

AMÉRICA LATINA

Com a sua atividade de cônsul do Chile, Mistral terminou associando a sua imagem ainda mais à de poeta e figura pública da América Latina, isso antes mesmo da região existir como um imaginário literário. Para o professor do departamento de Letras da UFPE Alfredo Cordiviola, a autora tem essa “vocação latino-americanista” bastante clara. “Essa vocação se manifesta por exemplo na sua ação pedagógica, na sua atuação no México no ministério de (José) Vasconcelos, outro grande latino-americanista, parte de uma geração de intelectuais, artistas, arquitetos, etc., que nos anos 1920 estavam repensando e reinventando o lugar do América Latina no mundo impulsionados pela revolução mexicana e por outros horizontes revolucionários”, comenta o crítico literário.

Segundo ele, talvez fosse possível definir a poesia de Mistral como uma certa “épica do íntimo”, “onde se condensa a dimensão coletiva com a íntima, e que contrasta com as épicas mais grandiloquentes como as do Canto Geral de Neruda, por exemplo”. Ao mesmo tempo, ela foi uma latino-americanista antes do imaginário da literatura da região existir para o mercado editorial internacional – isso só acontece com o chamado “boom” da geração de Gabriel García Márquez, Vargas Llosa e Carlos Fuentes, que independe da produção dela. 

“Claro que há toda uma reflexão sobre as literaturas nacionais e a latino-americana desde o romantismo: o que o ‘boom’ faz é instaurar a literatura latino-americana como produto a ser consumido em outros mercados – é nesse sentido que estou me referindo. Claro que a outorga do Nobel em 1945 marca sem dúvida um precedente nessa visibilidade, mas não vejo que seja tão importante quanto o impacto (que teria importantes repercussões para o passado e para o futuro das letras regionais) criado nos anos 1960 pelos autores do boom”, explica Cordiviola.

BRASIL

O Brasil foi mais uma etapa do processo de conhecer a fundo a América Latina para Gabriela Mistral. Quando estava aqui, ela escreveu no Jornal do Brasil: “O encontrar-me entre vós não é muito diverso do viver entre os meus, no Vale do Chile: a América é uma só em seu íntimo.”

Logo na sua chegada ao Rio, fez amizade com Cecília Meireles – lançaram um livro de poemas juntas. “A julgar pelas narrações de Gabriela, sua vida estava repleta de feitos assim, estranhos, paradoxais, que pareciam para ela cheios de significados, como se a vida fosse uma rua com esfinges de ambos os lados, e cada uma delas, ao propor seu enigma, entregasse a respostas das restantes”, escreveu a poeta carioca.

A autora chilena fez amizades literárias com Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Assis Chateaubriand e o seu predileto, Vinicius de Moraes. Conheceu Mário de Andrade através de Cecília. “É a inteligência feminina mais exata, mais sincera que jamais conheci. (...) Vinha-nos dela um som antigo. Tendo como ninguém o instinto de ensinar, acostumada a ensinar por hábitos passados, em pouco tempo nós parecíamos, a seu lado, umas crianças”, definiu o modernista paulista.

Mistral levou o Nobel 21 anos antes de seu conterrâneo, Pablo Neruda. Ainda assim, como destacou Mário de Andrade, foi de alguma forma uma professora do poeta do Canto Geral. “Posso dizer que Gabriela me embarcou nessa séria e terrível visão dos romancistas russos e Tolstói, Dostoiévski e Tchekov entraram em minha mais profunda predileção”, escreveu Neruda.

POEMA

Gotas de Fel

(trad. Ruth Sylvia de Miranda Salles)

Não cantes: sempre fica
à tua língua apegado
um canto: o que faltou ser enviado.

Não beijes: sempre fica,
por maldição estranha,
o beijo a que não chegam as entranhas. 

Reza, reza que é bom; mas reconhece
que não sabes, com tua língua avara,
dizer um só Pai Nosso que salvara. 

E não chames a morte de clemente,
porque, na carne que a brancura alcança,
uma beirada viva fica e sente
a pedra que te afoga
e o verme voraz que te destrança. 

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