Há cerca de 160 anos, o pensador Karl Marx publicou O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, livro em que ele analisa o cenário dos anos que antecederam o golpe através do qual Luís Bonaparte se nomeou imperador, à semelhança de seu tio Napoleão, na França. Na primeira página da obra, o filósofo alemão escreveu que a História geralmente se repete, sendo “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Essas reincidências históricas são muitas vezes retratadas de maneira fictícia na literatura, seja de forma distópica ou romanceada. Mas há também aqueles casos em que o enredo da obra se volta para o passado e acaba falando muito sobre o presente – às vezes, sem nem mesmo o autor imaginar tal predição. Foi assim com Milton Hatoum, que acaba de lançar o livro A Noite da Espera (Companhia das Letras, 240 páginas, R$ 39,90).
O romance, além de sinalizar a volta do escritor amazonense às narrativas longas após nove anos, marca também a estreia da trilogia O Lugar Mais Sombrio, em que acompanhamos Martim, um adolescente paulistano que, após a separação dos pais, se muda para a ainda jovem Brasília para viver com o pai, o engenheiro Rodolfo, e com seus 20 e poucos anos vai morar em Paris. O romance é ambientado entre o final da década de 1960 e o fim dos anos 1970, período em que o Brasil ainda vivia sob o temeroso Regime Militar. O caráter atual do enredo vai além da universalidade do tema do amadurecimento do personagem principal: ele é também pautado nas discussões políticas que costuram a trama.
Quando Milton Hatoum começou a escrever o romance, em 2008, o País se encontrava em uma situação bem diferente da atual, mais estável econômica e politicamente falando e não imaginava que as situações vivenciadas por Martim entre 1967 e 1972 poderiam se comunicar tanto com o momento em que lançaria a obra. “Entre 2008 e 2010, o Brasil parecia estar encontrando seu caminho, vivendo num paraíso. Depois que terminei o livro, aconteceu o impeachment e aumentaram as manifestações ultraconservadoras – elas já existiam, claro, não são de hoje, mas estão ganhando mais força”, pontua o autor. “Mas eu não previ nada disso, talvez o meu romance tenha previsto. A literatura às vezes funciona assim: você não elabora racionalmente certas projeções, mas quando o livro tá falando de outros tempos ele pode vibrar no presente”.
O livro começa em 1977, quando o protagonista já se encontra na invernosa Paris do mês de dezembro. A estação não parece ter sido escolhida por acaso pelo autor: as baixas temperaturas da capital francesa também dão o tom à solidão e ao saudosismo vivido por Martim. É a partir de uma conversa com seu aluno de português que ele começa a lembrar de sua adolescência e o sumiço da mãe, a professora de francês Lina.
“A quietude foi assaltada por lembranças de lugares e pessoas em tempos distintos”, escreve o próprio personagem, único narrador d’A Noite da Espera. A partir deste momento, Milton Hatoum apresenta dois Martins: o adulto, longe de seu país e de seus pares, e o jovem, revisitado por meio da releitura de seus diários. A complicada relação que ele tem com seu pai – apoiador do Regime – e a dificuldade em entender a ausência da mãe são aliviadas pela convivência diária com seu grupo de amigos, a pequena trupe teatral liderada pelo professor Damiano Acante, e o trabalho numa livraria.
Entre o despertar sociopolítico, a descoberta das cidades satélites e as primeiras aventuras amorosas com Dinah, é um privilégio poder acompanhar Martim ao longo de sua juventude e formação identitária. O vínculo criado com o protagonista é de intimidade e torna-se impossível não vibrar com suas conquistas nem se angustiar com suas desilusões – que não são poucas. A história do amadurecimento de Martim é também a de Brasília. Em A Noite da Espera, Milton Hatoum não constrói apenas uma intrigante história familiar, mas também oferece ao leitor um retrato de uma controversa cidade.
A personalidade de Lina é pouco revelada e, apesar de sua figura estar sempre presente no pensamento de Martim o tempo todo, sua ausência física permanece o grande ponto de interrogação do livro. Por que ela não pode visitar o filho? Porque ela só se corresponde por cartas e de maneira esporádica? A expectativa é que essas questões sejam respondidas ao longo do segundo e terceiro volume da trilogia (com previsão de lançamento para 2018 e 2019, respectivamente).
CARÁTER BIOGRÁFICO
A temática dos difíceis anos da Ditadura não é nova na obra de Milton: ele já havia explorado esse período da história brasileira em Cinzas do Norte, seu terceiro romance, lançado em 2005, com o qual ganhou o prêmio Jabuti e cujo enredo se passa em Manaus. A escolha geográfica d’ A Noite da Espera é outra novidade na trajetória literária de Hatoum, pois pela primeira vez ele desloca a narrativa do Amazonas e desembarca no Planalto Central. Ele mesmo conheceu bem a Brasília retratada no livro, pois quase na mesma época em que Martim e Rodolfo saem de São Paulo, o próprio autor deixou sua Manaus natal com 15 anos para estudar no colégio de Aplicação da Universidade de Brasília, Unb.
“Eu tinha muita coisa para contar sobre aquele momento histórico e sobre minha juventude fora de Manaus, longe da minha família. Escrever um romance de formação era também algo que eu almejava há um certo tempo. Esbocei essa história pela primeira vez em 1980 e minha ideia era escrever sobre um grupo de jovens da minha geração e, abordando os aspectos políticos e culturais da época, falar sobre essa descoberta da juventude, da passagem do tempo”, lembra o escritor.
As semelhanças entre a trajetória do criador e seu protagonista não se limitam ao fato de ambos terem feito de Brasília suas moradas. Assim como Milton, Martim chega na cidade e vai estudar na escola atrelada à universidade e também escolhe estudar arquitetura na universidade. Mas o romance não tem caráter autobiográfico para o amazonense. Sobre colocar um pouco de si em seus personagens, ele avalia que é algo comum entre os escritores. “Ninguém foge de sua experiência de vida nem de leituras”, conclui.
Leia trecho do livro:
"Os trechos que tocou me entristeceram, a lembrança de acordes tão melódicos me lançou para o tempo presente, ainda mais sombrio: esta madrugada parisiense, longe do Brasil, sem meus amigos, sem Dinah e Ângela, sem minha mãe. Fantasmas que surgem a qualquer momento entre o anoitecer e a primeira luz da manhã...
Talvez seja isto o exílio: uma longa insônia em que fantasmas reaparecem com a língua materna, adquirem vida na linguagem, sobrevivem nas palavras..."