Música

A última balada de Lula Côrtes

Após seu último show - uma participação na reedição de Vivo, de Alceu Valença - o artista foi se encontrar com fadas inspiradoras de versos perversos

Julio Moura
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Julio Moura
Publicado em 01/04/2011 às 19:48
Júlio Moura/Especial para o JC
Após seu último show - uma participação na reedição de Vivo, de Alceu Valença - o artista foi se encontrar com fadas inspiradoras de versos perversos - FOTO: Júlio Moura/Especial para o JC
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A antropofágica Comedoria do Sesc Belenzinho, em São Paulo, foi o palco das derradeiras apresentações públicas de Lula Côrtes, quinta, sexta e sábado da semana retrasada. Munido de seu tricórdio, Lula participou da reedição do show Vivo, de Alceu Valença, ao lado dos eternos companheiros de experimentações sonoras Paulo Rafael e Zé da Flauta. O revival se encerrou com a canção que proporcionou notoriedade ao grupo: Vou Danado pra Catende, lançada no Festival Abertura da TV Globo, em 1975, cuja seminal fusão de rock com sonoridades agrestinas pode ser conferida num videoclipe fácil de encontrar no You Tube.

Na noite de sexta, Lula puxou para si o microfone e esforçou-se para descrever aquele momento particular de eterno retorno. As lágrimas não o deixaram prosseguir com clareza, mas todos ali perceberam que elas reciclavam o gosto novo da vida ao autor de “Desengano”. O show terminou, os demais artistas deixaram o palco e Lula ali permaneceu, compartilhando com o público um bocado dos martírios e delírios loucos que vivenciamos. Alguém da plateia pediu a Lula que descesse do palco, para que fosse abraçado, acarinhado, acalentado por uma juventude de canto fosco que o libertava enfim do deserto desses abandonos.

De volta ao hotel, Lula convidou a mim e ao diretor de imagens Gustavo Caldas - que produz um documentário sobre Vivo - para acompanhá-lo em uma festa no Alto de Pinheiros, onde encontraria queridas fadas inspiradoras de versos perversos. Reunia-se aos seus para fazer as pazes com Deus, enquanto a força de sua canção se impunha nos auto-falantes, pela satisfação dos que se reencontram.

As lágrimas não o deixaram prosseguir com clareza, mas todos ali perceberam que elas reciclavam o gosto novo da vida ao autor de Desengano

Ao regressarmos quase pela manhã, com tonéis de birita nas ideias, Lula gritava que queria ir para o Inferno, um barzinho cult na região da Augusta, porque lá quem mandava era o diabo. Negamos diligentemente a exigência, pegamos um viaduto e ele tentou abrir a porta do táxi em movimento, ameaçando impulsionar a si mesmo para além dos limites do veículo. A motorista, jovem e zen, permanecia impassível enquanto Lula recitava-lhe obscenidades poéticas. A menina sorria discreta e ele a convidava para subir despida ao palco na última noite de Vivo. Uma bailarina suja de óleo que sangrava um rio no meio do barulho dessa cidade.

Depois do último show, no sábado, saiu com seu produtor, Lulinha, a filha Luana e mais uma amiga. Fora tomar, finalmente, seu último drink no Inferno. Na volta, exibia radiante seu sorriso magro diante dos roadies, produtores, técnicos e músicos da banda, que exultavam: hei, hei, hei o Lula é nosso rei. Improvisava um gestual pornográfico para os insolentes Iphones que insistiam em registrar a embriaguez da fria madrugada paulistana.

Buscou a morte como um guerreiro em seu cavalo. No último fim-de-semana, passou uma cantada na Elizabeth Taylor dentro do táxi lunar que inadvertidamente os conduziu ao caminho oposto do inferno. Sugeriu-lhe que mantivesse abertos os olhos claros para o mar. Franziu a testa, retirou o suor do rosto cor de madrugada e confidenciou galante: a dor é o inverso do verso das fadas.

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