No conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, publicado em 1940, o escritor Jorge Luis Borges inventou o hrönir: objetos que alguém perdeu e, quando encontrados, já não seriam como antes. Estes segundos objetos, porém, quando encontrados por outrem, também se transformariam num terceiro e assim sucessivamente. Portanto, achar um hrönir é achar um objeto modificado em sua enésima geração.
Hrönir é também o nome do grupo pernambucano criado pelo headbanguer Túlio Falcão e o matemático e físico Thelmo Cristovam. Juntam-se à eles Lucas Alencar e Henrique Vaz. Como o hrönir de Borges, a banda utiliza e transforma diversas fontes sonoras: eletroacústica, instalações artísticas, improvisação, gravações de campo, música computadorizada. Formado em 2001, o grupo tem uma característica peculiar: "a gente nunca fez um ensaio. A gente se encontra no show, conversa sobre música, literatura ou qualquer assunto e se entende tocando, se ouvindo", diz Thelmo. Após nove anos sem um novo disco, eles lançam agora, em parceria com os selos Seminal Records e Estranhas Ocupações, o álbum Massacre de Golfinhos em Taiji.
O álbum foi gravado ao vivo em 2013 durante o XI Encontro Nacional de Compositores (ENCUN), no Espaço Mundo, em João Pessoa. Possui apenas uma faixa, homônima, de 56 minutos. “Massacre é uma improvisação orientada. Ou seja, é uma bula com indicações para improvisação”, explica Túlio Falcão (laptop, voz e eletrônicos). Diferente da partitura, as bulas não são 100% precisas e dão espaço de liberdade para o músico fazer o que quiser. “Foi uma forma que encontrei para ter um maior controle sobre o tempo da peça e suas dinâmicas. Deste modo, torna-se os dois: composição e improviso. Fizemos um teste com este formato, com outra composição/bula em uma apresentação no Recife Antigo, junto com o Monodecks. Eu gostei do resultado e passamos a utilizar este conceito. Com isso, resolvemos um problema na hora de inscrevermos o grupo em festivais, onde você tinha que descrever nome da composição, tempo de duração, instrumentos, etc”, conta ele.
A peça é inspirada pelo documentário vencedor do Oscar The Cove (2009), do cineasta Louie Psihoyos. “O filme denuncia a caça e morte dos golfinhos na baía de Taiji e no Japão em geral”, indica Túlio. A prática consiste em encurralar os animais em alto mar, desorientá-los, empurrá-los para águas rasas e depois arrastá-los para uma baía. Boa parte dos golfinhos morre em 20 ou 30 minutos por hemorragia, asfixia ou afogamento enquanto são arrastados até ao carniceiro. Outros são seleccionados para serem vendidos a parques de entretenimento.
“Eu passei a me interessar por biologia marinha, ecologia e direitos dos animais há alguns anos atrás e isso inspirou tanto Massacre quanto Tilikum, que tocamos no Rio de Janeiro, e Sobrepesca, em São Paulo, no ano passado. Achei que, de certa forma, estaríamos contribuindo para divulgar esse absurdo que acontece lá em Taiji. Pelo menos, eu espero que sim! Então, eu escrevi a bula como uma história, com a chegada dos golfinhos à baía, o massacre, etc. Por isso, utilizamos os sons do golfinhos e do mar. Parece meio piegas, mas funcionou”, avalia.
A música é uma espécie de narrativa abstrata de horror e violência. Recria sons específicos (o mar, o vento, os golfinhos), mas também envolve timbres e texturas sonora diferentes que traçam uma topografia acidentada e ruidosa, um relevo disforme. Chega mesmo a soar virulenta e incômoda. Túlio comenta: “O uso do som dos golfinhos no Massacre é puramente imagético, verdade seja dita. Mas não faço diferenciação entre o som dos golfinhos, senóides (onda de frequência em forma matemática de seno), o fagote construído por Henrique (Vaz), a guitarra preparada de Lucas (Alencar), a tosse de alguém que estava assistindo a apresentação, etc”.
Seguindo o raciocínio, ele completa: “Em música contemporânea ou experimental (como preferir), não há essa diferenciação, eu acho. Não há o pensamento horizontal-vertical da partitura (harmonia x melodia). O tempo é pensado diferente. O interesse final é: se eu juntar isso com aquilo, como soará? E se eu esticar essa frequência? Se eu inverter esse som?”
Encontro de origens musicais distintas
Hrönir em em apresentação no Ciclo de Música Experimental, no Ibrasotope (SP), em agosto de 2015
O núcleo criativo do Hrönir é constituido por Túlio Falcão e Thelmo Cristovam (laptop, flauta, alto saxofone e trompete). Túlio é ligado ao metal e toca guitarra na banda Realidade Encoberta, que faz um cruzamento entre hardcore, punk e thrash metal.
Já Thelmo é um aficcionado por free jazz e krautrock alemão que desenvolve pesquisas nas áreas de psicoacústica e gravações de campo. Toca saxofone e qualquer outro objeto que se permitir, afinal, não possui conhecimento musical formal algum – não saberia tocar um lá menor se lhe pedissem, por exemplo. A partir desse encontro de universos diferentes, em 2001 o Hrönir foi formado.
“Eu conheci Thelmo no Beco da Fome (ponto de encontro dos punks e headbangers recifenses, no centro da cidade), entre o final dos 80 e início dos 90, através de um amigo meu que sabia que éramos fãs de Frank Zappa. A partir disso, nos tornamos grandes amigos. Mas o embrião para o Hrönir só viria surgir uns dez anos depois. Na metade dos anos 90, quando já tinha alguns projetos musicais no âmbito experimental, eu perdi o contato com Thelmo. Só nos reencontraríamos lá pelo final da década de 90, quando eu trabalhava em uma loja de discos no centro do Recife”, conta Túlio. “Sempre quis fazer algo musicalmente com Thelmo, mas havia o entrave dele não tocar nenhum instrumento. Um dia, ele me convidou para a casa dele para mostrar algo em que ele estava trabalhando: uma mixagem/manipulação sonora de samples de Stockhausen, Merzbow, tambores africanos, etc. Eu achei aquilo genial e logo imaginei aquilo como uma coda ruidosa de algo que viria com passagens de piano, vibrafone, etc. Ele curtiu a idéia e uma semana depois estávamos trabalhando no que viria a ser Anagrama, faixa do nosso primeiro álbum, Bardo Thodol. Assim, surgiu o Hrönir”, relembra.
Depois, Túlio conheceu Lucas Alencar (laptop, guitarra preparada, viola e eletrônicos) durante uma sessão de improvisação do Combo Recife de Improviso. Este, por sua vez, o apresentou ao músico e inventor de instrumentos Henrique Vaz (laptop, fagote de pvc, clarinete e eletrônicos). “A idéia era expandir as possibilidades sonoras do grupo com uma outra geração absurdamente genial que os dois representavam e representam”, explica Túlio.
Para ele, o ruído e o silêncio ocupam um lugar fundamental não só na sua música, mas em toda musicalidade contemporânea. “O ruído, hoje em dia, está bem diluído por aí. Até em música pop você o encontra. Sua utilização é indispensável para quem trabalha com música contemporânea, assim como o seu antagonista: o silêncio. Desde a revolução industrial que absorvemos o ruído como elemento que representa nossa época, não?Agora, em relação ao metal, o noise não é muito aceito. Salvo algumas bandas que flertam com o experimentalismo. No grindcore, que é mais aberto a outros gêneros, há uma interseção maior".
Ele relembra o encontro marcante com o ruído da música experimetal: "Quando comecei a ouvir música experimental, eu reconhecia o ruído como ferramenta nestes trabalhos que eu ouvia. E eu utilizei o ruído nos meus primeiros experimentos também, mas apenas como um pequeno material adicional às minhas ‘composições’. Quando ouvi o ruído sendo utilizado não como parte de um material composicional, mas como o todo, foi uma experiência bastante traumática (risos)”, comenta.
Túlio lembra do primeiro contato com o harsh noise (do inglês, ruído áspero) do japonês Merzbow, por intermédio de Thelmo. "Lembro da história até hoje: quando eu e Thelmo nos reencontramos, ele chega um dia na loja de discos que eu trabalhava com um cd na mão: 'Olha, pega isso aqui e leva pra casa pra ouvir! Eu não entendi nada do que tem aí, mas sem que tem algo muito foda nesse disco! Escuta e depois a gente conversa!'. Isso foi bem antes do experimento sonoro que ele faria e que culminaria no início do Hrönir. Não aguentei de curiosidade e pus o cd para tocar na loja mesmo. Era o Pulse Demon, do Merzbow. Quem conhece o disco, sabe que ele é muito, muito alto! Amplitude extrema de decibéis que fazem o volume 1 do seu aparelho de som parecer que está no 12 (risos)! Os clientes se assustaram, eu me assustei e o dono da loja gritou: "tira essa porra!". Fiquei em estado de choque e não via a hora de chegar em casa para ouvir o resto do disco", conta.
"Chegando em casa, eu não consegui ouvir mais de três minutos do CD. Eu odiei aquilo! Não entendia nada e comecei a duvidar da sanidade de Thelmo (risos)! No outro dia, não conseguia ouvir meus discos; algo me impelia a ouvir aquele. Fui ler os créditos do encarte enquanto tentava ouvir: nada feito! Após uma semana, meus discos tinham perdido a graça e eu estava totalmente viciado no Pulse Demon. Decidi importar outro disco do Merzbow, o Venereology. Daí, lascou! Eu e Thelmo começamos a fuçar mais coisas do gênero e isso culmina no episódio do início do Hrönir", diz.