NEGRO LEO

Entrevista: confrontos musicais e políticos de Negro Leo

Expoente da nova música do Rio de Janeiro, músico realiza show e oficina gratuita no Museu do Estado

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 26/03/2016 às 5:00
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Expoente da nova música do Rio de Janeiro, músico realiza show e oficina gratuita no Museu do Estado - FOTO: Foto: Divulgação
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Com músicas caóticas e letras carregadas de imagens desconexas, o carioca Negro Leo é responsável por Niños Heroes, um dos maiores discos de 2015. Seu particular processo de composição caminha entre as fronteiras da improvisação livre e da forma: acompanhado por sua banda  Felipe Zenícola (do Chinese Cookie Poets no baixo), Eduardo Manso (do Bemônio na guitarra) e Thomas Harres (da Abayomy Afrobeat Orquestra na bateria)  o tecladista, cantor e compositor faz uma longa sessão de improviso em estúdio. Depois, seleciona alguns trechos e cria a letra em cima desta melodia.

Hoje (sábado, 26), Negro Leo participa do projeto Ouvindo e Fazendo Música, no Museu do Estado, em duas atividades. Às 17h, faz um show solo improvisando sobre as músicas do álbum. Antes, às 15h, ministra a oficina gratuita Novos Procedimentos Cancionais, um bate-papo sobre "o ouvido triplamente qualificado como contraponto na educação formal da canção".

JORNAL DO COMMERCIO – Você se relaciona com um grupo de artistas associados a uma nova “vanguarda” brasileira (Bemônio, Dedo, Metá Metá), com os críticos fazendo referências a Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Mas você também mostra uma verve mais pop, colaborando com Ava Rocha. Como enxerga o trânsito entre esses polos pop e experimental?
NEGRO LEO – Eu acredito que a voz esteve para a música como a rostidade para o cinema e a fotografia na era da reprodução técnica, uma espécie de último aceno da aura. Não por outro motivo, a canção foi mais excessivamente explorada fonograficamente no século passado do que qualquer outro tipo de música. Mas acho que a voz também cria um ambiente neurologicamente mais receptivo à experiência musical porque é a primeira coisa que pinta na experiência musical. Ela pinta junto com a noção de ritmo. Então eu me sinto ligado à música vocal, não necessariamente pop ou experimental.

JC - Qual a importância estética da improvisação no seu trabalho?
Leo - Isso tá ligado à amizade que estabeleci com o pessoal do [selo] Quintavant em 2010, mais precisamente com Eduardo Manso, Lucas Pires, Felipe Zenícola, Marcos Campello e Renato Godoy. Eles mudaram completamente minha percepção de música vocal e acabou resultando em álbuns como Ilhas de Calor e Niños Heroes

JC – Comentando sobre o título Niños Heroes numa entrevista, você comenta que esses dois vocábulos se encaixaram perfeitamente na ideia do disco. Que ideia seria essa? 
Leo – Os caras editaram a entrevista, esse trecho perdeu o sentido. Eu dizia que os dois vocábulos mutuamente estrangeiros se encaixavam perfeitamente na ideia do disco, porque se no Ilhas de Calor não havia uma ideia muito consciente de limite, no Niños ela se consolidou. Então esses vocábulos aparecem como metáfora da noção de limite estilístico no contexto amplo do disco.


JC – Ao longo do álbum você fala de "imagens brutas do tempo do glifosato (herbicida tóxico da Monsanto) e do krokodil (poderosa droga russa derivada da morfina)". Algumas das imagens são “bebês fantasmas das guerras dormindo” e a expectativa de vida no Brasil como “chance de calouro”. Você se considera panfletário? É um disco explicitamente polítco, mas as letras são sempre difusas.
Leo – Todos nós panfletamos alguma coisa, é inevitável. Tem uma música no Ilhas que diz que “só o céu dos otários é neutro”. A confusão é parte de uma estratégia de discurso que pretende destruir a imparcialidade. Godard dizia na época do grupo Dziga Vertov, se referindo às esquerdas de seu tempo, que se um operário não fosse capaz de compreender seus filmes, não seria capaz de fazer a revolução. Mas aqueles filmes anti-didáticos, com duas linhas narrativas justapostas (imagem e som), até hoje devem esperar uma compreensão estética das esquerdas.

JC – A música Memória do Google se refere a uma "educação que angustia todos os coraçõeszinhos totalitários” e "eternece". Parece evidenciar que o totalitarismo está também no plano micro, onde menos é esperado. 
Leo – O mais legal dessa é que eu criei esse “eternece” como parônimo de enternecer e eternizar, um neologismo no meio desses vocábulos que propõe de um lado, com enternecer, a ironia do sadismo totalitarista. E por outro lado, a explicitação da eternização de seus códigos através de seus dispositivos pedagógicos. Mas esse totalitarismo panóptico do nosso tempo, a NSA, o Facebook, a Internet, engendram nova moralidade em defasagem com os códigos civilizatórios de ontem. Hoje todas as pessoas falam, e falam o que pensam. É como se tivessem aberto a caixa de Pandora dos sentimentos verbalizáveis e não verbalizáveis. Parece que, paradoxalmente, o super-homem habita a Internet pairando acima do bem e do mal. Eu acho que de alguma forma, no Brasil, isso vai nos conduzir ao superpatrimonialismo, uma espécie de apropriação de todas as coisas por todos e pulverização do estado em clãs, tribos, pequenos grupos de posse do que consideram seu, zonas autônomas. Isso é uma espécie de idílio pra mim.


JC – Ao mesmo tempo em que suas letras são fragmentadas e enturvadas, você diz não ser um “não-representado” politicamente e rejeita a relativização dos polos esquerda e direita. Pelo contrário, reitera: é esquerda, é PT, é Dilma. Por que?
Leo – Eu fico preso ao dilema de agir pragmaticamente como comunicador e artisticamente – no sentido da reputação que Platão conferiu aos artistas na República - como artista. Mas é evidente que o Brasil mudou significativamente pra melhor nos últimos anos e, embora eu me identifique em parte com o anarquismo, não acredito que haja, hoje, qualquer identificação popular com esse tipo de pensamento. Vejo, pelo contrário, que a população brasileira ainda se sente muito identificada com as liturgias, os textos bíblicos, religiosos. Dessa forma, acho que a esquerda deveria disputar a narrativa religiosa cristã num terreno próprio a ela. Quando Cristo diz: “meu reino não é desse mundo” ou “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” e isso passa batido na elaboração de um discurso esquerdista que prefere atacar aspectos fundamentalistas dessa ou daquela seita, perde-se a oportunidade de enfrentar o problema, literalmente, de frente.

Outra coisa: a tal crise de representação não atingiu a população como um todo. Pelo menos no Brasil isso é evidente agora com essa polarização política. Eu acredito que em alguns anos e com muito “trabalho de base anarquista” essa crise de fato possa aparecer com mais força e consumir o Estado. Mas enquanto temos um Estado, precisamos nos apropriar disso pra resolver demandas urgentes da carestia, e o PT, com todos os defeitos, vinha fazendo isso. No entanto, continua-se matando pretos, índios e açoitando minorias. Meu lado artista diz que temos que ser mais violentos, mas meu lado comunicador pragmático o evita.

JC – Não acha que a construção da usina de Belo Monte e a Copa do Mundo foram erros de uma política desenvolvimentista e que afastaram o PT da esquerda que os elegeu?
Leo – Sem dúvidas! E o terrorismo ambiental da Samarco também. Mas não podemos esquecer que grande parte da esquerda que elegeu o PT, o elegeu no segundo turno, com um voto temerário. Era Dilma ou Aécio. Dá pra ver a grande diferença.

JC – Você está preparando um novo disco para este ano e comentou que eram “canções de amor”. Fala um pouco mais sobre esse trabalho. 
Leo – Cara, eu disse que eram canções sentimentais, não particularmente de amor, mas canções sobre sentimentos. Enfim, há coisas de amor também, afinal, eu amo como todo mundo. Mesmo os maiores narcisistas amam. O disco tem 12 canções, tá ficando bonitinho, acho que dessa vez consigo fazer mais do que sete shows por ano. Forever Dolphin Love [disco do neozelandês Connan Mockasin], Giovani Cidreira e Pedrinhu Junqueira são as maiores referências do álbum. Tem algumas parcerias minhas com Ava e está sendo gravado na Rockit com Estevão Casé, Domenico Lancelotti, Pedro Dantas, Eduardo Manso, Marcelo Callado, Bruno Di Lullo, Bruno Schiavo, Ricardo Dias Gomes e acho que Chicão (do Quartabê) vai fazer uns arranjos pra melotron em duas faixas. Saravá!

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